Roberto de Sena
Havia nos seus olhos um jeito de canto gregoriano e a beleza dos salmos de Davi tocados em harpa. Mas seus olhos iam além tal qual a estrada do Cantinho do Senhor dos Aflitos, a estrada do Rio Branco ou o Vau da Boa Esperança. Os seus cabelos longos que nem a Romaria de Bom Jesus da Lapa, que nem as rezas cumpridas das rezadeiras da minha infância. Olho estas tardes feitas de queimadas e fumaça sobrevoando o tempo. Mas acho que sou feito de ausência, de silêncio sem tradução, sou sem nome e minha vizinha mais próxima é a solidão que desde tempos imemoriais me acena com seu olhar de sombra e sua pálpebra de teclado de computador. Escuto a música fúnebre das queimadas, ouço a música das facas compondo a sinfonia da noite profunda lá onde luas de delírio se projetam sob a voz de Zeca Bahia. O que escrevo agora é uma espécie de silencio ao contrário, escrever é isso: arrancar a sua própria pele e entregá-la a alguém que sente mais que você, a dor da solidão. A ausência de quem escreve não tem parâmetro, a solidão de quem escreve não tem fronteira e é muito maior que a solidão azul do navegador solitário Almir Klink sem ver terra, sem ver porto, sem ver aves, só água e água e água e léguas de água. É maior que isso a solidão de quem escreve navegando sobre coisa alguma e sentindo o cérebro misturando as ideias por dentro com a mesma tecnologia de um liquidificador, de uma máquina de lavar ou de uma betoneira mistura cimento e brita para, do sonho do arquiteto, erguer o prédio que reluzirá na avenida de uma bela cidade da América do Sul ou do Leste Europeu. É assim, nesta solidão de clausura que a arte fluiu dos dedos do Aleijadinho, de Congonhas dos Campos, da cidade da Barra com seu rosto de Rio São Francisco e Rio Grande, “das mãos criadeiras do mestre Garany ou do texto de altíssima voltagem de Osório Alves de Castro que me fez ancorar em seu porto calendário. Assim é arte das vozes de Bosco e Saulo Fernandes, vozes de Rio de Ondas, de Cachoeira do Acaba Vida, de Cachoeira do Redondo, vozes do cais de Barreiras, do Mercado Velho, “Zé, ainda me lembro de você Buriti” vozes de Barreiras em minha garganta que nem um sol ou uma saudade até onde eu não mais me souber. Assim quero escrever até os meus últimos dias, morrendo de saudades de Carlos Luis, meu sincero amigo de olhos meigos e profundos, das canções que fizemos varando noites longas, tomando chá de camomila e café, até que ele morreu em São Paulo e deixou esta solidão que me faz andar assim, meio de lado, precisando utilizar uma muleta de silencio para poder continuar. Assim revejo os cajus de Randesmar, as mandalas de Ataliba, as composições de Xuma e Ronaldo Sena, as noites azuis, as madrugadas que costuramos com nossas lágrimas e nosso desespero e nossa esperança no esvidraçamento da nossa memória. Mesmo que os urubus façam festa sobre nossos esqueletos, haveremos de sobreviver pela arte que tatuamos no corpo do tempo, na pele de uma cidade, na memória de um povo.
A minha arte tem isso: algo profundamente ligado a imagem de São Sebastião de Barreirinhas, as procissões, a voz de dona Veré, de dona Lalá, de dona Maria Nogueira, de dona Ana Viúva, rezadeiras da minha infância e que, mesmo sem saber, estavam me ensinando a poesia que hoje corre no meu sangue. A minha arte é a escrita. Dela vivo e só vivo por tê-la comigo e sem ela eu não teria salvação. Meu pecado e meu crime, e através dela me ajoelharei e pedirei perdão aos deuses por todos os que causei sofrimento e perdoarei a todos que me fizeram sofrer. É a arte a minha natureza. Aquilo que Deus me deu como dom e é a isso que me entrego nestas noites de solidão e ausência. O dom de escrever da mesma forma de quem carrega o andor na procissão de São Sebastião da Barreirinhas. Saibam todos que minha escrita, embora cheia de mandacarus, tem aves, tem flores, tem rios e buritizais. E sai do recanto mais profundo do Oeste Baiano e abre as asas e voa deixando perplexo os meus olhos de campos gerais. Encerro assim esse texto com o teclado gemendo solidão e ausência. Canto gregoriano sobre o verde dos buritizais.