A revelação, a partir de um memorando da CIA, de que o general Ernesto Geisel, presidente do Brasil de 1974 a 1979, durante a Ditadura Militar (1974 a 1979), tinha ciência e orientou a execução de opositores do regime, vem em momento “importante” da vida do país na avaliação de quem se dedica a estudar o período.
“A revelação choca e é muito grave. Confirma algo que se pensava: que as ordens e o modo de se fazer execução vieram do próprio Presidente da República”, afirma Gilson Dipp, ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça e primeiro coordenador da Comissão Nacional da Verdade (CNV).
Para o jurista, a sociedade precisa saber o que aconteceu no período e o relatório da central de inteligência dos EUA veio à tona hora certa. “A história do Brasil se escreve através de linhas tortas. Nós estamos em um período eleitoral e o país deve ter consciência desses fatos até para que não se tenha deturpação da vontade popular em votar ou eleger pessoas que ainda defendem esse período nebuloso”.
O professor de Relações Internacionais da USP Pedro Dallari, que coordenou a comissão durante em sua etapa final dos trabalhos, classifica o documento de “estarrecedor”. “Algo que é de uma barbaridade enorme, o extermínio de seres humanos, passa a ser tratado como uma política pública. O presidente decide se vai dar continuidade à política do governo anterior ou se vai fazer ajustes com a maior naturalidade.”
“Essas graves violações de direitos humanos na ditadura foram uma política de Estado, não foi produto, como os militares queriam fazer crer, de alguns psicopatas que agiram isoladamente.”, diz Dallari, em referência às conclusões da CNV. “O documento da CIA comprova o que já se sabia, mas os detalhes são escabrosos, muito graves. O fato de sabermos que os governos militares estavam envolvidos na repressão não nos deve fazer perder a sensibilidade com o horror”, diz.
Para o historiador Boris Fausto, o documento confirma o prejuízo à imagem de liberal atribuída a Geisel. “Há depoimentos famosos dele em que ele faz defesa da tortura em certas circunstâncias. Não que ele não fosse algo diferente dos super-duros de Garrastazu Médici e companhia, mas agora é um passo a mais, é um reconhecimento, uma afirmação pela CIA de que ele acabou concordando com a morte de gente considerada ‘altamente perigosa’”.
Para Fausto, o documento permite entender porque Geisel escolheu o general João Batista Figueiredo para suceder-lhe na Presidência da República. “O Geisel também não tem nada de liberal, tem responsabilidades profundas, mas também tem a intenção de promover uma abertura no regime. E não por pressões populares, mas, sobretudo, porque ele estava interessado na estrutura hierarquizada do Exército, que vinha se desmontando dia após dia”.
Dallari cobra um posicionamento das Forças Armadas. “Se não houver assunção, pelas Forças Armadas, de maneira clara, do que houve, sempre vai ficar essa situação. Enquanto as Forças Armadas não fizerem isso, sempre vai ficar aquele questionamento sobre a posição deles” afirma.
Gilson Dipp tem avaliação semelhante. “As Forças Armadas não precisam se envergonhar agora. Todo mundo tem que fazer sua penitência. Até porque hoje não se pensa como antes. Não se pode esconder [os documentos] para se preservar uma pseudo autoridade que não divulgue documentos daquela época que possam reconstruir a história do Brasil”.
Gilson Dipp também cobra que o Supremo Tribunal Federal volte a analisar as ações sobre a revisão da Lei de Anistia que pendem de julgamento na corte. A corte considerou constitucional a lei que anistiou militares e militantes políticas por suas ações.
“O Supremo tem que retirar de seus arquivos empoeirados as ações que digam respeito ao interesse do povo brasileiro e parar de discutir aspectos políticos e mesquinharias para dar holofote a cada um de algum de seus ministros. Mesmo que seja para manter sua posição, mas que julgue o que esta lá”, afirma o jurista.
Dallari compara o Brasil aos vizinhos Argentina, Uruguai e Chile, que processaram e julgaram militares envolvidos com violações em suas respectivas ditaduras. “Mesmo nos embates recentes que tem havido no Supremo, nas duas alas há ministros com forte compromisso com direitos humanos. Há, sim, uma maior sensibilidade para a necessidade de o STF dar uma resposta que eleve o padrão dos direitos humanos no Brasil e uma disposição de enfrentar esse tema difícil”
O historiador Boris Fausto expressa sua descrença em relação à revisão da Lei da Anistia. “Na prática, isso está tão longe da realidade. Estamos ameaçados de um avanço da extrema direita que pode vir pela via eleitoral”.
Via: Veja