Roberto de Sena
Naquele sábado em que uma chuva fina choromingava na manhã, eu e Diógenes saímos a esmo e, empurrados por nossas alucinações literárias, fomos parar em um boteco de ponta de rua. Ao contrário do que se possa imaginar, o lugar era até agradável. Diógenes pediu uma dose de cachaça brejeira, disse que sentia saudades de Serra do Ramalho, de andar pelas agrovilas e de namorar na beira do Rio São Francisco. Virou o copo de cachaça, olhou para o telhado, depois olhou para longe e cantarolou o verso de Caetano Veloso: “Velho Chico vens de Minas, de onde o oculto do mistério se escondeu. Sei que o levas todo em ti, não me ensinas e eu sou só eu, e eu sou só eu.”
Fico em silencio com o olhar pontilhando pela manhã ao feitio de uma viola de 12 cordas. De repente, me perguntou: “Me diga lá poeta, foi Deus que inventou os seres humanos ou os seres humanos inventaram Deus?”. Diógenes tinha dessas coisas, com sua voz cor de Serra do Ramalho, me surpreendia com perguntas, por vezes desconcertantes.
-Não sei Diógenes, muitos tem certeza que Deus criou os seres humanos, muitos pensam que os seres humanos inventaram Deus com a finalidade de ter alguma explicação para o terrível mistério da morte e, tem ainda aqueles que não acreditam em nada disso. Acham tudo uma bobagem, uma irrelevância, como diria Nando Reis.
Ele pediu mais um dose de cachaça e perguntou se eu achava que Deus existia mesmo. Respondi com uma frase de Raul Seixas. “Deus é tudo aquilo que me falta para compreender aquilo que não compreendo”. Ele sorriu, passou a mão na barba e disse, “Bela frase, profunda, filosófica, Raul era o máximo. Quero morrer igualzinho a ele, dormindo, sem ver a cara da danada da morte me amofinando. Até que não sou lá muito covarde mas da morte eu tenho medo.”
Ficamos em silencio por alguns instantes. Mas o silencio não era bem vindo para Diógenes. Ele desandou a falar sobre um artista plástico de Santa Maria da Vitória chamado Jairo Rodrigues que pinta como quem planta cajueiros na caatinga, semeia flores na paisagem do semiárido. Se referiu a beleza das carrancas de mestre Guarany e disse que nunca viu belezura na vida como os rios de Correntina e o santuário de Bom Jesus da Lapa. “São coisas que deixariam Gaudi de boca aberta, perplexo” considerou enquanto cortava um limão para colocar na cachaça brejeira.
De dentro do boteco eu pude ver as encostas das serras de Barreiras e os ipês que começam a florir com intensidade anunciando que setembro batia a porta com seu estandarte de primavera. Diógenes soltou mais uma das suas: “Olha só, parece que Van Gogh psicografou ipês nas encostas das serras.” Achei a frase maravilhosa e fiquei pensando nas possibilidades que a poesia nos proporciona de subvertermos a linguagem como fez Ferreira Gullar, Dentro da Noite Veloz.
Diógenes olhou o celular e viu que estava na hora. Precisava ir para a rodoviária pegar um ônibus de volta para Serra do Ramalho. “Meu mundo é ali” ele disse citando os mandacarus,as juremas, a espinheira, a caatinga dizendo que esse era o seu universo encantado quase gracilianamente mítico. Cantou um verso da música de Bosco Fernandes, “Nem que seja de boia, vapor encantado ou cavalo de troia vou chegar em Barreiras, na praça da feira e contar essa história”. ficou de novo em silencio. Me estendeu a mão e disse: “FUI”. E foi.
Levava o semiárido dentro da cabeça.
.