Quadro O GRITO, de Edvard Munch
Roberto de Sena
Texto escrito no ano de 2020
Era março do ano de 2020 do século 21, a Pandemia do Coronavírus, chegou ao Brasil depois de espalhar mortes e perplexidades em outras partes do mundo. E aqui também se lançou no seu trabalho fúnebre de mastigar cérebros e pulmões.
E a quarentena se fechou sobre o País.
Se fechou sobre todos nós fazendo o chumbo das horas
Pesar em nossos ombros. Pegos de surpresa e, sem plano de fuga, tivemos que olhar para dentro de nós mesmos.
De um jeito visceral. Profundo. Silencioso. Denso, súbito e melancólico.
Dentro de casa sentimos a pegajosa sensação de caranguejos
Caminhando em nossas almas e escorpiões expelindo fogo em nossos juízos.
O vírus letal nos obrigava a ficar em casa trancados. Eu me sentia desarvorado. Desarvorado quer dizer: sem árvores, sem sol, sem sombra, sem lombra, se é que eu me lembre ou deslembre ou vislumbre além do que me sucateia recolhendo os pedaços da música do silencio que se instalou em meus olhos.
E o medo para além de nossas forças se constituía em outra forma de doença.
Sofríamos por nós e pelo outro e mergulhávamos de cabeça no abismo da perplexidade, no fundo dos porões onde amontoávamos nossos escombros mais inconfessáveis. A língua do silencio lambia o tempo e um capinzal de medo crescia em nossos olhos.
Ficar em casa era a única forma que a ciência nos apontava para tentar conter a transmissão do vírus.
Na verdade, nos primeiros meses, nem a ciência e nem os governos sabiam que diabo era aquilo.
Que vírus enigmático era aquele. Que maldição era aquela que caia sobre a terra e interferia em tudo de hemisfério a hemisfério fazendo jorrar silencio na atmosfera.
E para piorar tudo o governo brasileiro trombava em si mesmo, em sua pequenez e em sua cegueira. O negacionismo virou uma outra forma de doença que também comia o cérebro de muita gente.
Em março do ano de 2020 vivemos sob o império de um governo
Cuja prioridade era o delírio na sua forma mais terrível, mais feia, mais angustiante.
Digo isso porque há delírios belos, poéticos, iluminados.
Trancado em casa com os cadeados do atordoamento
Desandei a tocar minha viola
Com as cordas feitas
De silencio
espanto
E solidão
Só pra dizer
Que é mais fácil
Cruzar um deserto
Que atravessar uma ausência.
Eu que sou apenas um compositor de nuvens
Um ogan das palavras, um lobisomem lambendo a engrenagem das nuvens
Um aluado, um cachorro correndo atrás da lua
Eu que sou um homem que dá sorte em dar azar
Lancei-me neste texto parar tentar tirar a corda do pescoço da noite e documentar,
-Com o fogo da escrita, com as sobrancelhas do atordoamento,
O que vivemos dentro da Pandemia
Ainda que de forma trôpega, cambaleante. Bêbada,
Ainda que de maneira capenga, enfiei a lua nestas palavras sem lua
enquanto a Covid-19 menstruava silencio e estrangulamento sobre o planeta.
No ano de 2020 a Pandemia da Covid-19 mostrou seus dentes de catástrofe e penumbra e nos mastigava com a língua da morte estabelecendo escombro sobre escombro e enchendo o mundo de desespero.
Algo que não nos passava pela cabeça, que não estava em nossos planos mais bizarros, de repente, invadiu nossa vida, revirou tudo do avesso. Eu com meu olho de sacerdote do fogo, olhava para aquilo tudo e não entendia nada. O que estava acontecendo? Estava mesmo acontecendo ou não passaria de uma alucinação coletiva?
A pandemia nos deixou atordoados, pedindo misericórdia, fazendo penitência e tentando romper o silencio que se instalou de um lado a outro do planeta, fazendo a perplexidade expor suas raízes em longas em penubrosos domingos. Teólogos de bíblia nas mãos tentavam explicar, por meio das escrituras que isso já estava previsto no livro sagrado, cientistas em laboratórios estudavam a geografia do vírus e se esforçavam para entender a doença, a sua caligrafia, o seu desenho, a sua forma a sua fome. O seu comportamento e como o vírus fazia para – igual baratas – roer as células humanas.
Qual o itinerário do coronavírus? Sua tipologia? Sua forma de contagio? A frase poética de Shekespeare estava mais viva ainda “Há mais mistério entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia.”
Com os olhos cheios de crepúsculos, o mundo ouvia a opera do absurdo. O Deus Jânius com suas duas faces, uma olhando para frente e outra voltada para traz, parecia ri do nosso atordoamento e do que nos tornamos de repente. Contemplo um quadro de Frida Kalo e insisto em acreditar que a arte nos conduzirá ao milagre de suportar a solidão, o distanciamento, a saudade, a dor e que tudo isso que parecia sem sentido algum, deveria ter um sentido. Só não saberíamos ainda qual.
Talvez descubramos um dia.
Quem sabe?
Mas será que tudo na vida precisa mesmo ter um sentido?
A vida tem algum sentido? Não sei.
Talvez um dia possamos descobrir. Sei lá. Como não sei, passo camomila no dorso da tarde e acaricio seu pelo de animal que caminha para a noite ruminando restos de claridade. Penso nessas coisas meio loucas nestes dias de Pandemia e quarentena quando governos fecham cidades, quando não há aviões e nem ônibus e o mundo entra num beco de onde espera encontrar uma saída Qual a saída?. Esperando o que? O mundo segue com seu relógio de bruma e as árvores olham para os seres humanos e sentem pena destes seres que são reféns da incerteza embora achem que não. Os seres humanos, arrogantes e prepotentes, acham que controlam o mundo. O mundo ri sarcasticamente. O mundo ri. Depois fica sério. Depois ri. Depois estica os cabelos e nos olha enfurecido. O mundo as vezes enlouquece com a propotência do ser humano e, do seu íntimo brota fogo, brota tsunamis, terremotos, tempestades, furacões, dilúvios sem Arca de Noé e nós – seres humanos – só temos como alternativa nos agarramos ás tábuas da perplexidade para tentar sobreviver mesmo quando somos arrastados pela força da enchente. Ainda assim não aprendemos a ser mais humildes e continuamos achando que somos os donos da verdade absoluta. Foi assim no início dos tempos, quando as civilizações se formaram e ate mesmo quando nasceram as crenças nos seres superiores ou quando se passou a acreditar em um Deus maior, controlador de todas as coisas. Senhor de todo o mistério que não conseguimos desvendar.
É assim agora com todos os avanços tecnológicos do ano destes anos de pandemia e será assim daqui a mil anos. Nascemos para a incerteza e a perplexidade mas poucos se dão conta disso.
Escrevo por isso.
Sentindo no cangote o bafo da incerteza e da perplexidade. É de perplexidade e incerteza que somos feitos. O que é o destino senão perplexidade e incerteza?
Escrevo na tentativa impossível de imitar Edvard Munch, pintando a sua famosa tela O GRITO em sua agonia, sua ansiedade e suas pinceladas densas, cheias de nuvens, solidão, ocasos e medos. Estou dentro do conflito que se estabelece em meu coração e em meu cérebro disparando minhas crises nervosas, meu desespero e minha busca de luz no breu profundo desta noites de alucinação e tormento.
O teclado do computador parece querer pegar fogo e sinto um cheiro de fumaça subindo de cada palavra que escrevo nestas noites de pandemia e delírio. O Poema é o meu esboço de barcos com os quais fugirei nem que seja para o abismo. Escuto vozes que vem de um céu onde o vermelho, o laranja, o azul e as nuvens chumbo se misturam para além do horizonte. Apesar desta loucura, desse urro, existe esperança no meu coração e enquanto existir esperança resistirei ao sofrimento, a dor, ao desamparo, ao abandono. A esperança que tem um cheiro azul de moça que nos sorri e nos estende a mão quando precisamos de um acolhimento. Que não nos xinga, não xinga a nossa família, não julga, não critica, não crucifica mas nos recebe com o calor das pétalas dos seus olhos e o tesão de viver.
Escuto Caetano cantar “Quem é ateu e viu milagres como eu sabe que os deuses sem Deus, não cessam de brotar, nem cansam de esperar”
Ouço Gilberto Gil “Nos meus retiros espirituais descubro certas coisas tão banais, como estar defronte de uma coisa e ficar horas à fio com ela. Nos meus retiros espirituais descubro certas coisas anormais como alguns instantes vacilantes e só”
O vírus fechou o mundo
Com a chave de um pesadelo
Estádios de futebol
Teatros,
cinemas
Shows,
Casamentos
Aniversários,
Parques
Praias
Congressos
Governos
Igrejas
Mas não fechou a minha alma
Nem meu coração
E muito menos meu cérebro
Mesmo quando a loucura me rondava com seu turro de domingo triste.
Nestes anos de pandemia que começou em 2020, diante dos nossos olhos acontecia o desfile macabro dos cadáveres da COVID-19
É lugar comum dizer que um ser humano quando entra na condição de cadáver
De nada servem os diplomas, o mestrado, o doutorado,
Os títulos, os cargos, a riqueza, as honrarias. Claro! Tudo isso só tem valor em vida.
Um cadáver é apenas um cadáver com todas as condições que resumem qualquer homem ou mulher, de qualquer classe social, a apenas um cadáver. Nada mais que um cadáver que pode ser enterrado ou lançado aos urubus. Não faz muita diferença. Um cadáver para adubo da terra, para a fome da terra.
Um cadáver é apenas um cadáver como outro qualquer que se desfaz em lama e putrefação, cinza e abismo. “Nascestes do pó e ao pó voltarás.”
É certo que, de alguns cadáveres podem nascer flores, podem crescer árvores, um cadáver pode adubar um campo de girassóis que iluminará primaveras por muitos séculos. Isso pode servir de consolo. Um cadáver adubar um campo de girassol revela que mesmo da putrefação pode germinar a poesia e o germe da poesia, da literatura, da arte são fundamentais para superaremos os desastres, as catástrofes, e nos reerguermos sobre os escombros.
A arte é a flor que plantamos contra a barbárie.
Escrevo este poema em prosa, preso nesta madrugada longínqua e despedaçada para dizer que o vírus da Covid-19 dominou o mundo no ano de 2020 e espalhou angústia, medo, melancolia e perplexidade. Encheu a terra de cadáveres. Caminhões de cadáveres cruzando cidades diante dos nossos olhos opacos e de nossa devastada capacidade de pensar. O que somos? Somos mesmo ou pensamos que somos o que na verdade não somos e nunca chegaremos a ser ou o que somos é uma equação que nunca se resolve? O que somos quando estamos em estado de cadáveres em um caminhão sendo levado para o crematório? O que somos? O Nada? Mas o que é o nada? A física quântica, a filosofia, a poesia. podem explicar o nada? Ou o nada não tem explicação alguma? Ou, como disse Guimarães Rosa, é possível transformar o nada em alguma coisa. Esse é o desafio. Existe algo de matemático que traça uma outra rota não física para a nossa existência? De que sabemos? O que somos? Quem somos? Para que fomos feitos? Para a fé ou para a descrença? Para a alegria ou para a tristeza, para morte, para esperança ou para o abismo? Ou para tudo ou para nada? O que seria o vírus da Covid-19? A besta fera do apocalipse ou o próprio apocalipse? Uma revelação? Algo escondido no Livro de Jó ou nos códigos secretos da Bíblia? O que seria? Uma alucinação? Uma conspiração ou apenas uma doença que surge quando menos se espera como são os casos do câncer, do infarto, do AVC, da embolia pulmonar . Penso nisso nesses dias tristes em que vivemos com medo de que, de repente, sentíssemos uma repentina falta de ar e os pulmões ameaçassem explodir em UTIS e leitos de entubamento e morte?
Faço essas perguntas a mim mesmo enquanto o vírus da Covid-19, com o seu relógio de morte, com sua música de execução e desterro, fez o que nenhum outro organismo fora capaz
Um vírus que – sei lá porque (ou sei?) – me lembrava Hittler com seus olhos sanguinários
E seus campos de concentração, seu extermínio.
E sua insanidade. O vírus era uma outra espécie de holocausto acontecendo diante dos olhos de todos. E todos estavam expostos aquele campo de concentração cercado por leões imaginários.
Um vírus tão forte que abalou o mercado esse monstro que ninguém sabe o que é mas que todos sentem a “sua navalha na carne diariamente.” O mercado, esse animal feroz que salta sobre nós e nos devora com facilidade de lobo comendo ovelhas e quanto mais se alimenta mas tem fome.
Milhares de empresas faliram, milhões de desempregados vagavam como zumbis pedindo comida, pedindo misericórdia, pedindo clemencia enquanto viam sua dignidade ser estuprada por aquele vírus maldito e pela indiferença do negaçonismo e da estupidez.
Com a Pandemia do ano de 2020, o mundo se transformou em um grande ponto de interrogação
Um pedido de socorro universal
O espanto estava em todos os lugares,
Em todos os países e até na Organização Mundial de Saúde,
Na ONU, no G5, nos organismos internacionais mais fortes.
A ciência se debruçava sobre o vírus
E ele escapava por qualquer fresta e pipocava milhões de mortes
Sendo uma das piores catástrofes de nossa geração.
E olhe que não foram poucas as catástrofes vividas por nossa geração.
Os países decretavam afastamento social, quarentena,
A população tinha que ficar em casa aquartelada para não ser infectada
E mesmo assim o medo aumentava seu volume e seus escombros.
Não se pode esquecer que a ciência faz milagres. A ciência é em si um milagre.
Eu acredito em Deus e há muita ciência em ter fé.
Deus para mim é matemática e música. Estas coisas estão em Deus
Assim como Deus está na arte, na filosofia, na poesia, no idioma, nas palavras, na arte.
Deus fala conosco todos os dias através do sol, da chuva, dos rios, das árvores,
Dos desertos, das montanhas, dos mares, dos buritizais, das vereadas,
Dos bichos e, sobretudo, Deus nos fala através das pessoas e da arte.
Mas não podemos nos esquecer que o demônio também fala através das pessoas.
Há pessoas que são o próprio demônio em figura de gente
e mesmo em meio a tanto sofrimentos arquitetavam golpes
se aproveitando do momento desesperador que os mais pobres enfrentavam.
Com a Covid os ricos ficavam cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres, esmolambados, miseráveis.
Mas diante do caos, também há seres humanos que são anjos corajosos e botam os demônios para correrem
A pandemia não olha para os mais ricos do jeito que estrangula os mais pobres
Mesmo na pandemia ricos e pobres são diferentes, embora todos estejam expostos ao vírus letal
O rico tem seu estoque de defesa, sua proteção, seu dinheiro. O pobre não tem defesa nenhuma. Muitos pobres optaram por colocar uma corda no pescoço e morreram por não suportar a vergonha de não poder pagar as dívidas e de cair na indignidade total. “Antes morrer livre do que viver de joelhos”.
O demônio não é matemática e nem música. O demônio pode ter muita arte
Mas ele, com todas as suas piruetas, não é a Arte. Fique certo: se o demônio existe ele é o contrário da arte. A arte é Deus. E quando eu escrevo, mesmo que seja tentando explicar como o coronavírus nos devastou, ainda assim, em estou bêbado de Deus. Sinto ser algo divinal que estimula a minha pulsão criadora para escrever essas garatujas no meio da madrugada apodrecida pelo vírus. A arte é mais poderosa que as leis. A arte tem suas próprias leis. Deus é arte. Arte é Deus. O demônio é a ausência da arte, da ética. O demônio é a catástrofe, é o abismo, é a ausência de luz. Mas havia arte sendo feita na Pandemia e se havia arte havia Deus com sua clemência a nos ouvir mesmo que esse desejo de suicídio permaneça em mim, dentro dos meus olhos, no cérebro, me atormentando na solidão enquanto escrevo, buscando coragem para o momento do impulso e saltar do nono andar e corpo no chão debaixo do imenso luar. Se e
u saltar do nono andar haverá o espanto do primeiro momento, a mulher que está comigo enquanto escrevo e não dar a menor bolo para a minha angústia, não sentirá nada, deverá pensar tranquila e serena. “Já morreu tarde”. Haverá apenas o burburinho das viaturas e depois tudo continua como se eu nunca tivesse existido. A gente existe mesmo ou somos apenas alucinação e delírio?
O coronavírus colapsa os pulmões das pessoas, faz os corações entrarem em colapsos,
Nervos entrarem em colapsos. E essa insanidade que penetra em tudo. O vírus despedaça lares e a tem a capacidade de fazer um ser humano não suportar o outro ainda que seja em um momento de desespero em que tentamos nos agarrar em uma tábua de salvação seja ela o qual for. Mas há esperança: os amores também surgem e fazem a vida florescer. Girassóis também nascem sobre o caos. O caos fica paralisado ante a beleza de um campo de girassóis e se curva diante do poder da arte.
Eis o poder da palavra escrita. Ficar para sempre, documentada em seu desenho de milhões de séculos, em seu arcabouço que foi pensado para ser justamente o que é. Um rio que leva as histórias de um tempo para outro tempo para que os habitantes do planeta terra possam ter no que se espelhar e seguir na grande aventura de viver. As palavras possuem raízes de jatobá, de ipê, de mogno africano. As palavras são madeira de lei.
Escrevo este poema que extraio do fundo dos olhos para dizer que os médicos e todos os profissionais de saúde corriam de um lado para o outro como se estivessem em uma guerra. Hospitais eram a salvação e o próprio colapso e as horas se esvidraçavam e se quebravam em pedaços que se alongavam pelas madrugadas costuradas no corpo do tempo.
As pessoas morriam. Sim as pessoas morriam aos milhares e uma cor lilás e fúnebre deixava um aroma de espanto nos olhos dos que iam ficando. Mas muitos se curavam e saiam aplaudidos dos hospitais por terem vencido a batalha contra o vírus mortal. Não foram poucas as vezes que ouvimos som de sax na varanda dos apartamentos fazendo jorrar a música azul da esperança. Aqueles que deixavam o hospital e escapavam da covid e saiam com jeito de quem olhou nos olhos da morte, sentiram o seu odor, o seu bafo, viram de perto a morte lhes puxando pelos cabelos. Os que escaparam, mesmo entubados, conseguiram acertar um soco no queixo da morte e ela fugiu deles.
O som de um sax parece vir da raiz mais profunda da terra, do pulmão humano. É o milagre da santa música.
É por esta razão que escrevo. Para contar que muitos pulmões estouravam no feitio de balões e de dentro deles se erguia uma noite desconjuntada: a morte com sua cuia de nada, com seu vácuo, nos deixava tontos e sem rumo caminhando dentro de um enigma e nossos cérebros ganhavam a aparência de brócolis quando murcha. Pelo menos era isso que eu pensava olhando a tarde cor de tamburi despencando por trás dos prédios. Eu ali parado, olhando o horizonte. Quilômetros dentro dos olhos e arames, enigmas e atordoamento.
Os pulmões das pessoas explodiam. Granadas dentro do corpo. A morte não parava de fazer o seu trabalho mórbido, cruel e bizarro. Era uma fábrica de onde os cadáveres iam sendo expelidos.
As manhãs que antes eram feitas de azul e entravam marinhas pelas janelas
Agora se tornavam cinzas e com enormes dentes da perplexidade que mordiam nossas certezas. Será mesmo que seres humanos tem certeza de alguma coisa que não seja a morte?
Parece ser esta a essência do ser humano. O princípio da base da criação. O ser humano foi criado para a incerteza, para viver constantemente dentro dela e se adaptar a esta realidade imutável. Hoje presidente da república, rei, general, desembargador, presidente do tribunal e amanha apenas um cadáver para os dentes da terra ou para se transformar em cinza. Um cadáver igual ao catador de lixo, ao pobre miserável para quem nunca ninguém deu a menor atenção. Os invisíveis.
Hoje famoso jogador de futebol, artista, cercado de mulheres colossais, intelectual cheio de título e láureas. Amanhã apenas um cadáver para o apetite da terra. “Nasceste do pó e ao pó, voltarás.”
A diferença é que alguns seres humanos, mesmo depois de se transformarem em cadáver, continuarão a iluminar a humanidade para sempre pelo que escreveram, pelas obras, pelas telas, pelos prédios que ergueram, pelas teorias que criaram, pelas descobertas que fizeram. Assim é com Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade, Ferreira Gullar, Gabriel Garcia Marques, Gaudi, Anne Frank, Joana Dark, Frida Kalo, com Aisten, com Galileu Galiiei, com Arquimedes, com Socrátes, Pitagoras que a milênios inventou as notas musicais de são utilizadas até hoje. E o que dizer de Platão, Aristóteles e do apóstolo Paulo. Seres que morreram há tantos anos mas que permanecem vivos e muito maiores que qualquer Pandemia. Um ser humano alcançar a condição de sobreviver ao seu tempo e permanecer influenciando gerações, é uma tarefa para poucos. Jesus Cristo está acima de todos pelos ensinamentos, pelo amor ao diferente, pela cultura do amor e não do ódio.
Continuo pela madrugada batucando essas palavras enquanto o vírus espalhava o terror semelhante a uma ditadura e muitos desapareceram sem direito a velório, sem velas, sem rezas. Só desespero e solidão. Viraram apenas um número na frieza das estatísticas. Desapareceram como muitos desaparecem para sempre em uma ditadura ou diante da guilhotina com a qual o mercado corta a cabeça dos sem dinheiro, dos que não consomem, dos que não compram, dos que não exibem cartão de crédito, nem carrões, nem roupa de marcas. Os invisíveis que são relegados a condição de não gente. De subproduto da brutalidade do sistema de exclusão dos mais pobres. O mercado tem ódio dos que não ficaram ricos, dos que não receberam herança e nem propina e seguem sua tragédia cotidiana de silencio e ausência. Mercado e Coronavírus. Parecem, em essência, diferentes, antagônicos mas podem ser a gênese um do outro. A ciência pode dizer isso melhor, eu sou apenas um aprendiz de poeta divagando nestas noites de delírio, escrevendo para tentar escapar da loucura, para não me matar. Penso em uma corda no pescoço, o corpo girando, a língua para fora as nuvens estarrecidas com aquele cenário macabro. Sou eu um minuto antes do suicídio. Escrevendo para pedir socorro. Para não me pendurar no telhado com uma corda no pescoço. É preciso suportar e tentar seguir em frente, pular sobre o abismo.
SOCORRO
SOCORRO
SOCORRO
O que mais apavora na pandemia é a solidão e a falta de ar.
Milhões sentem o bafo da morte no cangote. A morte dando coices furiosos por todos os lados.
Um amigo meu que ficou na UTI me disse que a falta de ar – durante a Covid-19 – é muito pior do que morrer. Que a morte em si não é tão pavorosa quanto ficar sem respirar. É uma espécie de estrangulamento e a sensação é que os pulmões estão cheios de vidro e poeira. Morrer não é ruim. Ruim é olhar nos olhos da morte e ouvir sua risada sarcástica.
Mas a hélice do mundo continuava girando. Em plena pandemia um homem negro – George Floyd – foi morto nos Estados Unidos por um policial branco que o asfixiou com o joelho sobre o pescoço. Ele morreu pedindo para respirar. O policial branco foi o seu coronavírus sem um respirador para aliviar a morte. Aquela agonia, aquela barbárie exibida nas telas de TV pelo mundo afora provocou uma revolta popular como há muito não se via. A indignação nascia, feito flor dos lábios e dos olhos do povo e se espalhou pelo mundo. Havia uma esperança sobre os escombros e um sax fazendo jorrar a santa música revelando que a beleza pode nascer dos escombros e até da falta de esperança. Quando não se tem esperança é que mais precisamos ter esperança. Foi na corda da esperança que amarrei meu silêncio e minha dor. Foi na corda da esperança que fiz meu varal de delírios.
Durante a Pandemia os especialistas nos orientavam para evitarmos abraços, toques, beijos. O vírus nos tirou o que de mais belo existe entre os seres humanos. O amor em carne e osso. O amor em saliva e orgasmo. O amor em explosão do corpo dentro do corpo em seu vulcão de desejo.
O vírus nos separou um dos outros erguendo as paredes da quarentena entre nós.
Nossos medos pintados com os pinceis de silencio tal qual Guernica e a angústia estridava diante de um espelho onde a morte dançava entre nuvens e tocava seu clarinete de perplexidade. Seu diluvio sem arca de Noé. Uma cabra pastava nas nuvens.
Assim o mundo enfrentou a pandemia do Coronavírus século 21
A solidão era o único meio de defesa.
Nesse ponto o vírus foi pedagógico
Reafirmamos a certeza que mesmo quando somos obrigados ao isolamento
É que mais precisamos uns dos outros.
Dos garis, dos entregadores de comida, dos motoristas, dos porteiros, dos policiais,
Dos jornalistas, dos médicos, dos enfermeiros e de pessoas que nos ajudam a cuidar de nossa casa. Sem eles nos entregaríamos de forma muito mais fácil à cova onde os leões nos devorariam com sua fome bizarra. Eu me senti assim Daniel na cova dos Leões sem forças para escapar.
Nos conforta saber que na hora da solidão, da angústia, do desespero, do delírio, ainda temos com quem contar.
Eu tenho fé em Deus e há muita ciência em ter fé.
Eu acredito em milagres e acho que a ciência é um milagre.
A existência de Deus é em si um milagre.
Eu não preciso ver milagre. Eu aqui escrevendo sou o milagre da escrita. Sim a escrita é um milagre, criada pelos fenícios permitiu ao ser humano comunicar-se entre seres que viveram há milhares de anos. Como não acreditar no milagre da palavra?
Eu ergo um poema por ser a palavra a minha única arma
Que empunho em nome da humanidade.
Agora e para sempre quando sairmos desta estação no inferno,
Quando pudermos andar outra vez de mãos dadas
Bebendo a felicidade em goles de vinho
Sob as estrelas que povoam o céu de todos os cantos do mundo.
Todos nós sentimos uma imensa angustia nos olhos
Uma dor que condena. De quantas saudades é feita uma quarentena?
Essa coisa tenebrosa que tirou até a nossa capacidade de sorrir
E o nosso direito de ir vir.
O que nos salva é esse evangelho feito de poesia e delírio como se pentecostes caísse sobre nós com sua força quaresmal.
Na pandemia eu sei que perdi o juízo.
Tai uma coisa que não me fez
A menor falta. Juízo é o que o ser humano menos precisa em uma pandemia.
Precisa de delírio e de poesia. Perdi o juízo e nem me preocupei. Quem o encontrou que faça bom uso. Se é que meu juízo sirva para alguma coisa. Neste momento escrevo sem um pingo de juízo na cabeça e as palavras vão saindo que nem serpentes que saem debaixo das pedras e procuram um lugar para tomar sol. Ofereço apenas minha cabeça na bandeja, se é isso que você deseja, para poder exibi-la na igreja e que assim seja. Devo lhe dizer que toda vez que me lembro de tua voz serena tenho vontade de derrubar as paredes da quarentena. Ouço uma cabra pastando entre nuvens.
O vírus plantou dias de muitas solidões, de muitos delírios e muito desamparo. A quarentena é uma parede onde bato minha cabeça e pedaços do meu cérebro se espalham pelo chão. Tento juntá-los em meus caixotes de angústia e enfiá-los nas gavetas do delírio. Há uma dúvida que cultivo: estou morto ou estou vivo? Quem perdeu um parente, um amigo, um pai, um irmão, um filho na pandemia conhece a extensão da dor. Punhalada cuja cicatriz fica para sempre no corpo. As ruas estão vazias mas o que mais dói é o vazio na alma e nos olhos das pessoas. Não é um vazio qualquer. É uma forma de amnésia. Quando tudo isso passar me olhe nos olhos e diga meu nome várias vezes. Diga meu nome para eu saber que eu ainda sou eu mesmo, ainda que eu seja outro. E que você, é você. Ainda que seja outra. Se eu já for outro se você já for outra, não importa, caminharemos juntos dentro deste enigma tentando entender no que afinal nos transformamos.
Propina sobre venda de caixões
Propina
Propina
Propina
Sobre propina
São milhões que eles faturam
Jogando terra tranquilamente
Sobre os cadáveres da Covid-19
Quando se perde a esperança
Damos o primeiro passo para endoidar Fiquei doido de pedras. E como não sou de jogar pedras
Passei a atirar palavras. Elas batiam nas paredes da quarentena. E viravam um troço esquisito,
uma nuvem de mosquito, uma praga do Egito ou apenas a solidão de um homem aflito. Durante a Pandemia, meu pulmão foi a poesia.
Faço exercícios físicos
Todos nós precisamos ter pernas e cabeças fortes pra correr e fugir da angústia. Se não for possível correr, chame a angustia para a briga, enfrente-a com bravura e a elegância de Mohamed Ali dançando no ringue.
Dance no ringue, troque socos com angústia. Não deixe que ela lhe derrube. Acerte a angústia no queixo com força, com vontade, para que ela vá a nocaute. A angustia vai aparecer muitas vezes mas é preciso enfrenta-la sempre com a coragem e a frieza de um boxeador no ringue. Opa! Eu nem tinha reparado que em meus olhos nasceram um crisântemo e uma bromélia na madrugada velha mas, voltando ao que eu estava dizendo, enfrente a angústia e não tenha vergonha e depois tome um café com pamonha. Fugir da angústia Parece com fugir da polícia. Só quem escapou sabe do que estou falando. A angústia e o oficial de justiça, nunca vão a sua casa para dar boa notícia. Nem em noite de novena. E nem mesmo na solidão da quarentena. Leões devoram minha alma no meio da arena E a noite ri com olhos de hiena. Me deu uma vontade De fugir Para o monte fugy e me esconder lá onde o vento ruge. Mas não adianta fugir. A angústia a gente enfrenta e tanta acertá-la no queixo para que ela vá a nocaute ou então ela nos mata de infarto, de câncer ou de AVC ou loucura.
Vi um caranguejo tocando realejo. E o Rio São Francisco se transformando no Rio Tejo. É cada coisa que vejo nessa pandemia. Nessa quarentena que é de dar dó, que é de dar pena. As palavras as vezes são facas. Isso todo mundo já disse mas que uma coisa fique claro: Engolir palavras é uma coisa. Engolir facas é outra. A dor de engolir uma palavra, é muito diferente da dor de engolir faca mas ambas são dolorosas. Dores diferentes é claro. Mas dores são dores.
Vou escrever nas paredes da quarentena O arroz e o feijão são tão importantes quanto a liberdade de expressão. A mensagem que você me mandou Com um texto bem pequeno foi uma mistura de remédio e veneno. Fique você sabendo que uma mensagem só não faz verão. Mas pode espalhar tempestades. E as andorinhas não estão nem ai. Na quarentena entendi que a amnésia não é apenas uma falha da memória. É um lugar para onde fugimos quando o desespero é maior que a nossa capacidade de suportar. A arte pode nos salvar da nossa terrível condição de lama e abismo. Por isso existe muito de fé, no mistério da obra de arte.
Sinto aquela mesma sensação do trabalhador que, no final do mês, recebe o salário e sabe que não vai dar para pagar as contas. O trabalho compensa? E para piorar as coisas na Pandemia tive uma crise existencial, , crise financeira, deu vontade de apertar o gatilho e fazer uma besteira. Ou eu fujo ou enlouqueço e quando tudo terminar eu nem sei se me reconheço estarei com a alma pelo avesso. A palavra PANDEMIA Tem quatro silabas. Essas quatros silabas foram quatro porradas em minha cabeça
PAN
DE
MI
A
Meu cérebro deu pau ficou tudo lokidau.
Eu fique com esse jeito fortuito. Deu curto circuito. Andei muito mal. Meu cérebro deu pau. Tá tudo lokidau. Não teve São João, não teve carnaval. Eu só via cadáveres no jornal. Meu cérebro deu pau. Parece que nunca mais vou sair desse lokidau. Sonhei que estava Ouvindo um solo de Sivuca. E ouvia alguém me chamando pra cair na muvuca. A quarentena deixa a gente com a cabeça maluca. Acho que tô ruim da bola. Internet, celular, novas tecnologias. São muitas as invenções mas nenhuma delas é melhor do que o calor e a emoção da voz humana. A voz humana –em qualquer idioma – Será sempre a mais poderosa ferramenta de comunicação. Havia tigres rugindo dentro das palavras. Havia lobos uivando em cada frase E elefantes pisoteavam furiosamente o que eu queria dizer. Fico meio doido, meio tonto, quando a lua vem bater o ponto. Ponto pra ela. A Covid 19 fechou tudo Mas meu coração ficou aberto
Na pandemia mundo entrou em colapso. Tive a sensação de que as máscaras voaram e se transformaram em pássaros sem rumo, sem canto, sem árvores. O País sem rumo dentro de uma pandemia e satã gargalhando sobre todos nós, vomitando labaredas em nossos corpos e queimando com óleo diesel e gasolina as nossas consciências. Como costurar esse tecido esgarçado? Que terapia adotar para um país na corda bamba, com as pernas bambas e batendo biela e metendo a cara na parede? As labaredas de satã queimavam a Amazônia, o Pantanal, o Cerrado, era uma Pandemia de fogo dentro da Pandemia do Coronavirus. Animais morriam queimados ou sufocados pela fumaça. Desespero.
Teclo essas palavras para que elas sejam um documento do que enfrentamos durante a pandemia. A polarização política, a aberração nos debates em que uns diziam que o vírus era de esquerda e outros diziam que era de direita. Uma doidice jamais vista. Será que a política fez todos endoidarem de uma hora para outra ou a loucura já estava ali latente sem que nós tivéssemos a mínima percepção do que estava por vir?
Será que minha pobre poesia, minha forma tosca de escrever dará conta de explicar tal fenômeno? O que afinal estava acontecendo com o povo brasileiro?
O cérebro humano –este animal que pode ser ao mesmo tempo manso e feroz – é um lugar onde a ciência luta com montanhas de dificuldades para tentar desvenda-lo e não consegue. A poesia as vezes chega lá mas de uma forma subjetiva, pelas ondas que conduz o sentimento, a sensibilidade. Tal qual a filosofia.
O cérebro humano mesmo com todo o avanço tecnológico continua sendo um dos maiores mistérios. A mulher que você mais ama pode, num momento de loucura, te matar e depois nem ela mesma sabe explicar porque, por qual razão. Assim como pode acontecer com você também. A loucura e a lucidez cada vez mais parecem ser a mesma coisa. Vai chegar a hora em que se vai trocar uma pela outra e ninguém vai perceber a diferença como as pessoas que tiveram uma epidemia de insônia em Cem Anos de Solidão de Gabriel Garcia Marques.
Na solidão destas noites quietas em que meus fantasmas ficam de guarda escrevo para que este poema em prosa ou verso, dependendo do momento, possa funcionar como um documento e que daqui há anos muitos possam recorrer a ele para saber como foi que a poesia, mesmo a má poesia, a poesia de um homem tosco e de poucas letras, vindo da garganta do sertão, com voz de semiárido e veredas no olhar, conseguiu atravessar esse tempo de pandemia. É por isso que escrevo, que cisco estas palavras, que faço essas perguntas e que não escondo a minha perplexidade diante do que o coronavírus nos causou.
Foi assim como o poema UMA ESTAÇÃO NO INFERNO, DE RIMBAUD
“Antigamente, se bem me lembro, minha vida era um festim no qual todos os corações exultavam, no qual corriam todos os vinhos.
Uma noite, sentei a Beleza em meus joelhos.
– E achei-a amarga.
– E injuriei-a. Armei-me contra a justiça.
Conjurei os verdugos para morder, na minha agonia, a culatra de seus fuzis. Conjurei as pragas, para afogar-me na areia, no sangue.
Fiz da desgraça a minha divindade. Refocilei na lama. Enxuguei-me ao ar do crime. E preguei boas peças à loucura. E a primavera trouxe-me o horrível gargalhar do idiota.
Ora, por último, chegando a ponto de quase fazer o trejeito final, sonhei encontrar a chave do festim antigo, no qual talvez recobraria o apetite.
A caridade é essa chave. – Esta inspiração prova que tenho sonhado! “Sempre serás hiena, etc…” exclama o demônio que me coroou de tão amáveis papoulas. “Vence a morte com todos os teus apetites, com todo o teu egoísmo e todos os pecados capitais”. Ah! estou farto de tudo isso:
– Mas, querido Satã, eu te conjuro a que não me fites com pupila tão irritada! e à espera das pequenas covardias atrasadas, para vós outros que admirais no escritor a ausência das faculdades descritivas ou pedagógicas, para vós arranco algumas hediondas páginas do meu caderno de
No ano de 2019 a hipótese do vírus não existia. Vivíamos todos a nossa vida dentro da normalidade. Tomávamos vinho em noites frias de lua, viajamos, fazíamos amor, íamos a restaurantes, a shows, a teatro, aos parques mas, de repente, de uma hora para outra, uma mão de ferro desabou pesada sobre nós na forma de um martelo batendo com força em nossas cabeças. Estávamos dentro de um enigma e não havia como decifrá-lo. A solução foi o confinamento dentro de casa para não contrair o vírus. A solução foi a solidão, o delírio, a melancolia.
A depressão começou a bater e nunca a voz humana foi tão necessária para nos sentirmos vivos.
No Brasil milhões de pessoas não tem esgotos e meu olhar esgotado escorre pela noite da Pandemia. O poeta é um delator de si mesmo. Não faz delação premiada. Delata aquilo que vai no seu coração e coloca nas palavras os escorpiões que estão no seu cérebro. O Brasil tem milhões de pessoas sem esgotos, isso esgota qualquer país, e transforma qualquer nação em um imenso urinol, um vaso sanitário com a descarga quebrada. Cenário perfeito para as doenças avançarem por todos os lugares na forma de um exército invasor, sem farda, mas que invade o corpo das pessoas e explode dentro delas granadas de alucinação e morte.
Escrevo este texto que pretende ser um documento. Um registro do delírio, da insanidade que imperou na jurisdição do tormento e da angústia com milhões de pessoas perdendo emprego, perdendo vidas, perdendo a esperança. Com milhões de pessoas aluadas, perdidas em seu confinamento.
E aqueles que precisam vender o almoço para comprar a janta? Os que precisam ir vender o cafezinho, os cabelereiros, os massagistas, os vendedores ambulantes, o invisíveis, os sem salários? Como ficar em casa sem ter o quer comer e sem ter o que dar para os filhos comerem?
Nestes dias de Pandemia, nas redes sociais, as discussões descambam para as trevas, para o pântano do obscurantismo, para a lama. Onde seres humanos se transformam em feras bestiais e trazem o apocalipse nos olhos e caos nas mãos. O poema se ergue tentando ser uma flor sobre o pântano, uma música de violino tocada sobre um túmulo, uma lágrima sincera, um buritizal na vereda para que a vereda não seque. O poema se ergue com sua eletricidade e sua capacidade de iluminar o breu por onde o absurdo escorre como se fosse a coisa mais natural do mundo. O poema erguido tal qual um relógio de Salvador Dali.
Esta é a contribuição que posso dar, pois só tenho palavras e sei que elas pouco significam em uma sociedade que vai perdendo até o poder da fala. Só alguns tem o lugar privilegiado da fala. Mas o poema se ergue na tentativa antiga de dar voz a todos com a força do sol. Torre traçada por Gaudi, como cantou Caetano em Vaca Profana que derrama o leite mal na minha cara e leite bom na cara dos caretas.
Nestas noites de solidão, com um colar de silencio pendurado no pescoço e para não enlouquecer escrevo nas paredes da quarentena, isolado, sozinho, na noite medonha com os pensamentos maus do jeito de demônios me arrodeando e eu não me entrego a eles. Resisto. Não aperto o gatilho, não me penduro no telhado com uma corda amarrada no pescoço pois sei que o poema ainda que ninguém leia, ainda que ninguém esteja nem ai para ele, tem gosto de aurora e sol nascente e se abre feito as manhãs do sertão ou feito o azul que se estende mar adentro. Tenho pensamentos verdes que nem os buritizais do Oeste Baiano ou o mogno africano ou o canto das araras nas manhãs sertanejas. Mas também tenho pensamentos sombrios, macabros, trevosos. Apertar um gatilho ou colocar uma corda no pescoço e acabar com tudo. Com o sofrimento de viver. Ficar só o silencio e a ausência de quem não teve capacidade de lidar com a dor, com o caos, com a desigualdade, com incompreensão, com a falta de empatia do ser humano, com quem não se acostumou com a barbárie. E fugiu pelo único caminho que tinha para fugir. Feito Torquato Neto e Vladimir Maikovisci
Tanta gente ganhando dinheiro com a morte. Tanta gente contabilizando a morte e fazendo dela o seu negócio. Não só na Pandemia do Coronavírus mas é sabido que a morte sempre foi um grande negócio e movimenta uma fábula de dinheiro para o estado, para os bancos, para o mercado. Estes seres abstratos e tão concretos para quem tanto faz a vida ou morte. Seja com uma ou com outra, eles sempre lucram. O mercado, o estado, os bancos. Imensos crocodilos a nos arrastar com seus dentes, vampiros a beber nosso sangue.
Como sofrem aqueles que não tem plano de saúde, que vegetam nas filas dos hospitais com os familiares pedindo socorro sem que ninguém ouça. A voz dos pobres não chega aos ouvidos de ninguém. Existe autoridades que são treinadas para não gostar de pobres e jogam os pobres na lata de lixo, descartados. Isso é lugar comum. Todo mundo já disse mas nunca é demais continuar dizendo como se eu estivesse batendo um prego em uma consciência. Pode ser que uma hora surta efeito e se compreenda que os pobres não são sub gente, são gente de carne e osso como qualquer outro ser humano.
Este é o ambiente ou falta de ambiente na pandemia de 2020. Escarro minha revolta nas palavras pois é só o que tenho. São minhas armas e com elas me defendo e ataco. As palavras nada podem contra as balas que matam os jovens negros da periferia como se fossem moscas, mas de algum modo a palavra pode ser um escudo, bote ter algum veneno na ponta da seta e acertar aqueles que nos humilham. Esta é a razão pela qual, enquanto todos dormem, eu me debruço sobre o teclado e vou digitando essas angústias.
A quarentena ganha um tom esbranquiçado, como se o mugido de um boi pudesse ser marrom. Será que pode? Falava-se na pior recessão dos últimos 50 anos e a poesia se debruçava sobre esses escombros tentando dar conta de explicar a fumaça da barbárie.
Há momentos na história em que o tempo ergue as sobrancelhas e ganha um ar de meditação. Guindastes erguem palavras soterradas há muitos anos e elas reaparecem da forma de cascos de navios que são retirados do fundo do mar. Carcomidas mas ainda capazes de contar a história como ela aconteceu. Assim é a poesia nestes momentos de crise em que substâncias derivadas do que nunca pensamos se projetam marrons sobre o silencio das ruas desertas e dos olhos perplexos das pessoas.
Abro meu guarda-chuva e saio pelo quintal. Não sei porque a palavra se chama guarda-chuva. Eu mesmo tenho um guarda chuva, já tive vários na vida mas não me lembro de ter guardado chuvas a não ser em algum canto da memória. Pode ser que eu guarde as chuvas que caíram nesta pandemia e que eu olhava de dentro de casa com uma saudade profunda da infância quando corria nas ruas apaixonado pelo espetáculo da chuva caindo no sertão. São maquetes de saudades que correm em nosso sangue, são nossos calabouços interiores escondidos no sótão que cada pessoa traz em si e que só de vez em quando se permite visitar. Sigo teclando angústias nestas noites de desvarios e, as vezes recebo a visita dos deuses que me dão um chá de coragem e me dizem que a humanidade estará sempre sujeita a tudo. As bactérias, aos fungos, aos vírus, aos mosquitos, os bichos, aos malucos que podem nos atropelar na esquina, a um atirador que resolve apertar o gatilho sem nenhum motivo e te matar sem nenhuma motivação a não ser a sua própria loucura como tem acontecido tantas vezes, aqui e em tantos lugares do mundo.
Mas nos humanos – assim nos consideramos – desde sempre tivemos esta ambição de ter o controle sobre as coisas, de ter a ilusão que pilotamos a vida, que temos o volante do destino. Isso nunca aconteceu e talvez seja essa – um dia – a maior descoberta do ser humano: uma forma de controlar o seu destino. Será que isso acontecerá um dia? Será que a humanidade alcançará este avanço tecnológico e será, de verdade, comandante supremo do seu destino? Por enquanto – neste ano de 2020 do século 21 – somos todos passageiros da incerteza. É dentro dela que viajamos, ela é a nossa nave e não sabemos que rumo, a nave dos acontecimentos tomará. Se hoje estamos muito bem de saúde, amanhã o coração pode cismar em não bater, uma veia da cabeça pode estourar ou você, pode se jogar de um prédio sem saber direito porque fez aquilo. Como pode também alguém despertar do coma quando já se era considerado quase morto. É a vida que é assim. Espanto e surpresa. Sempre foi. Nem o mercado, este ser sem coração e sem alma, consegue ter o controle sobre o destino. Pode controlar as pessoas, o dinheiro, o desejo, os gostos, as vontades, pode dar as ordens mas não tem o poder absoluto de controlar o destino de ninguém embora contribua para que muitos fiquem alegres ou tristes e para a maioria enlouquecer tentando ser aquilo que o mercado diz que você tem que ser.
Isso tudo que escrevo pode ser apenas divagações de um aprendiz de poeta no meio de uma noite solitária, reflexões sobre a solidão mas é também o caminho para onde a pandemia nos impele, nos joga, nos atira. Qualquer pessoa pode pensar o mesmo que estou pensando agora, pode até não escrever mas pode pensar. O pensamento, igual ao destino, ninguém controla. Pelos menos eu nunca vi falar em alguém que só pensasse o que quisesse.
Estas noites de Pandemia se transformaram em uma vitrine da solidão e do desespero para muitos e também na esperança para outros. Cada um reage de uma forma diante das situações da vida. Isso é lugar comum. Cada um tem um jeito de olhar vitrines. Uns olham com um desejo imenso de comprar alguma coisa outros olham como se nem estivessem vendo.
Alguém já disse que as coisas mais belas da vida, as melhores coisas do mundo não foram feitas de forma racional. Se você parasse para pensar em tudo que você vai fazer, você não faria nada. Provavelmente nem teria nascido quando mais saído de casa. O irracional tem um papel instigante na vida do ser humano.
Utilizo meu lado irracional para ir escrevendo na tentativa de fazer uma coisa bela ainda que dolorosa sobre um momento tão triste que o mundo vive com a Pandemia. Com os telejornais falando a toda hora sobre o número de mortos, mostrando pessoas chorando por terem perdido pais ou filhos, mostrando cemitérios, covas, hospitais, dor e sofrimento. O meu lado racional me impele ao medo, me manda ficar quieto esperando que isso passe e que logo todo mundo acorde desse pesadelo e possa se abraçar e comemorar a volta da vida em praça pública. Mas o meu lado irracional me pede que eu continue escrevendo ainda que nunca ninguém leia esse texto. Pelo menos boto para fora as angústias e fico a me lembrar daquela passagem bíblica em que Cristo expulsa uma legião de demônios do corpo de um homem e os demônios se apoderam dos porcos e os porcos desesperados se precipitam no abismo. Me recuso a ser os porcos que se precipitaram no abismo embora reconheça que escrever é uma forma de se lançar num abismo, o abismo da escrita.
Vejo nas redes os vídeos, as lives e depois vou me cansando daquilo tudo e fico shekesperanamente atordoado. Há mais mistério entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia. Há mais mistério entre o céu e a terra do que o céu e a terra. Há mais terra e céu do que mistério. Há mais mistério do que filosofia, há mais mistério do que mistério. Com o guindastes do pensamento tiro do fundo do mar da memória essas palavras para que elas contem o atordoamento da Pandemia do ano de 2020, no Brasil.
É certo que escritores geniais, doutores, pós doutores em países do primeiro mundo estejam escrevendo sobre isso com dados estatísticos, com gráficos, com reflexões muito mais profundas do que essas minhas toscas palavras. Não tenho talento e nem racionalidade para isso. Faço o que me cabe. Escrevo estas angústias com a coluna vertebral doendo, com mil problemas me rodeando, ratos gigantes me ameaçando, dividas, alucinações, vontade de pedir perdão, de sair correndo a noite pela cidade feito um maluco gritando que a Pandemia está me perseguindo. Na verdade escrever em tempos como este é uma forma de sair correndo desesperado pela cidade mesmo que ninguém me veja. Vomito nas teclas a minha angústia. Este é meu trabalho de Hércules.
A saudade vai moendo dentro da gente, vai mugido seu desamparo e vai nos dando uma coisa difícil de explicar, Não é fácil passar madrugadas teclando palavras. Me faz lembrar minha mãe, horas na máquina costurando roupas e, de vez em quando suspirava de forma tão profunda que cabia todas as perplexidades da vida. Ela não precisava dizer nada. Aquele suspiro, longo, saído do fundo do peito, arrancado tal qual fosse uma lança, resumia, por certo, a dor que ela estava sentindo. E eu menino olhava para ela e conseguia entender aquela sua forma de expressar o quanto uma vida sacrificada dói no coração de uma pessoa. Essa lembrança da minha mãe na maquina de costura atravessa toda a minha existência e costura angústias nas madrugadas em que atravesso aos prantos.
Estou assim agora escrevendo dentro desta Pandemia. Pensando nos amigos distantes, nos que não vejo há muito tempo, nos que eu gostaria de falar. Amarro a madrugada no pescoço e fico dando voltas dentro da casa roboticamente. O silencio se estende que nem um tapete por sobre a rua e relâmpagos digitais iluminam a sala. O texto empaca que nem jegue no sertão. Desempacar um jegue não é facial mas desempacar um texto é muito mais difícil. Mas insisto martelando ideias nas teclas. A noite espicha o rabo e vai se alongando tal qual a pandemia do coronavírus.
Sei que esse meu texto simplório nunca frequentará a história da arte mas pouco me importo. Pessoanamente dou de ombros e sigo escrevendo esses desesperos, exercendo o direito de berrar de solidão no meio da madrugada. Se os vizinhos acordarem pode ser que eles batam palmas na janela ao saber que tem alguém exorcizando a catástrofe apenas com o poder da palavra, com o verso impresso na alma. Pela manha ainda zonzo e fora de órbita estenderei minha alma no varal para que ela sirva de testemunha que durante a Pandemia não me entreguei, não fiquei parado, empunhei a palavra e fui para o campo de batalha com a espada da palavra, com o dedo no gatilho da palavra sabendo que talvez ninguém iria ler essas divagações, essas elucubrações em torno do absurdo mas que era preciso escrever pois uma força me empurrava para isso. “Por isso uma força estranha me leva a cantar” (escrever) Que força será essa? Não sei. Saberão os cientistas, os estudiosos, os linguistas, os catedráticos? Não há nenhuma sermão do padre Antonio Vieira nestas bobagens que rabisco. Há, quando muito, um anzol de pescar tardes, manhãs, noites, madrugadas, de tirar-lhe os órgãos como se faz com peixe e cozinha-las como peixes, estas noites com barbatanas de surubins do Rio São Francisco e eu, apesar da solidão as devoro com apetite e vou avançando sobre as paginas com a força de um trabalhador braçal plantando mandioca no sertão mesmo sabendo que a chuva pode não vir e ele pode não colher nada e perder todo o trabalho feito e mesmo assim, tem a coragem de recomeçar anos a fio a mesma luta. Plantar, esperar a chuva e se a chuva não vier perder tudo. É gente brava que só tem de seu a vida e uns cacarecos de sobrevivência. Vai seguindo tocando a vida como se ela se resumisse apenas naquele trabalho braçal.
Um cansaço imenso me domina e mesmo assim não estou disposto a me deixar vencer. Avanço, tropeçando aqui e acolá, caindo e levantando dentro do texto, garimpando a pedra preciosa escondida em cada palavra na noite veloz de Ferreira Gullar ou na noite dos que morreram nos porões da COVID-19. Avanço sobre esta noite tendo o texto como arma e escudo, meu estilingue, meu bodoque, meu punhal que utilizo como ponta da palavra nesta noite onde digito angústias na Pandemia.
Viver é muito perigoso, já dizia Guimarães Rosa, mas ele dizia também que as pessoas não morrem, ficam encantadas provavelmente em outra dimensão. Tendo dar um fortificante ao texto, um xarope, um chá de raiz forte para que ele continue me conduzindo pela mão pelos seus corredores que vão dar sabe se lá onde. Quem sabe onde o texto vai dar? O texto é irmão do destino e nos toma e nos arrebata e nos arrasta por caminhos que nem sonhávamos, principalmente dentro de uma pandemia.
Não é fácil escrever na Pandemia. Um homem negro – João Alberto Silveira Freitas – foi espancando até a morte no supermercado Carrefour em Porto Alegre.ma véspera do Dia da Consciência Negra. Uma barbárie, uma execução que reverberou em horário nobre e mostrou a cara mais cruel do racismo brasileiro. Floyd virou um símbolo da luta contra o racismo mesmo na pandemia. Não é fácil acariciar angústias como se elas fossem um animal de estimação. O texto vai virando uma cerca de arame farpado, vai se alongando com seu imenso pescoço. Escrevo esperando a hora em que o dia bote o focinho de fora comece a remover meu lixo interior com uma ferocidade de caititu faminto.
Sou um roceiro que pensa que escrever é o mesmo que semear raiz de mandioca e que vai descascando palavras com a lâmina do silencio mas a palavra é em si uma lâmina e corta a carne de quem escreve e as vezes de quem lê. De todo jeito é necessário mergulhar nesta Pandemia e escrever e repetir como estou fazendo agarrado no pescoço da solidão. Sou daqueles seres da caatinga, do semiárido que não desistem nunca e juram que um dia vencerão o sol, a miséria, a fome, utilizando para isso a cara e a coragem. Na vida precisa-se muito disso: cara e coragem embora só isto não bastem.
Não e fácil atravessar uma Pandemia, como alias nada na vida é fácil para a maioria das pessoas. Alguns nascem privilegiados e a vida para esses é um parque de diversões. Mas são poucos. A maioria pena saindo de casa as 4 horas da manhã, deixando filhos pequenos, sendo cuidados pela avó ou por uma vizinha e rezando para que nada de mal aconteça. Assim foi com dona Cida, vendedora de beiju, ela ia de rua em rua com sua bacia de beiju na cabeça, oferecendo a um e outro até que a Pandemia chegou. O governo deu ordem para que todos ficassem em casa para tentar impedir o contagio. Mas dona Cida e milhões de brasileiros não podiam. Se ficassem em casa não teria como dar comida aos filhos. Ela tinha cinco. Três de um marido com quem viveu alguns anos e depois ele desapareceu. Ela procurou por ele durante longos anos e nunca mais teve notícia. Acredita que a policia o matou. Me contando a sua história ela me disse que não aguentava ficar sem homem, que nunca em sua vida vira coisa tão gostosa quanto homem e mulher na cama e assim teve mais dois filhos, cada um de um homem diferente. Fez laqueadura para não engravidar mais e, de forma poética, reafirma que segue fazendo estripulias com os homens que topam ir para cama com ela. “Foi Deus que deixou isso para nós. É um consolo. É a alegria do corpo quando uma mulher e um homem se dão bem na cama. Vixe nossa senhora, é uma belezura, fico toda arrepiada só de me lembrar, é coisa divina. O satanás deve ter ódio disso” disse ela desatando uma risada.
Não podia ficar em casa. Tinha que vender o seu beiju para comprar arroz, feijão e mais algumas coisinhas para os meninos comerem, eles já estavam ficando crescidinhos e daqui a pouco poderiam ajuda-las, se não fossem aliciados pelo tráfico e mortos pela polícia ou pelos próprios traficantes. Confiava em Deus que não. Dona Cida com a bacia de beiju na cabeça era um síntese da Pandemia. Uma síntese do Brasil. Ela seguiu seu caminho, oferecendo seus produtos, dobrou uma esquina e se embrenhou em um bairro onde esperava ganhar alguns trocados.
Não sou profeta e nem tenho essa pretensão mas prevejo que a Pandemia da miséria pode nunca abandonar o Brasil. Parece ter encontrado aqui solo fértil para proliferar e se agiganta feito uma árvore do mal relegando tantos brasileiros ao abandono e ao esquecimento sem energia elétrica, sem água tratada, sem esgoto, sem saúde, sem educação, sem comida, sem casa, sem nada.
A Covid-19 com todo seu caos, sua dor, sua desolação, seu desamparo e seus milhares de cadáveres apenas destampou a miséria e a pobreza que se estendem igual a capim seco nas caatingas, nos sertões e nas periferias.
Eu paro por aqui enquanto fico olhando uma cabra pastando entre nuvens. Estarei doido?
A pandemia fechou as cidades mas deixou meu coração aberto, sangrando. Só me restou escrever esse texto capenga, em delírio com o fogo e a água dentro de cada palavra. O resto é solidão e ausência. É mais fácil atravessar uma quarentena do que uma ausência.
Acho que as variantes do vírus em deixaram variado.
Mas é certo que mesmo meio doido, meio zonzo, que mesmo tendo perdido o juízo, mesmo amargurado e pensando em suicídio, enfrentei uma pandemia, como nunca imaginei em toda a minha vida.
E acho que você caro leitor também nunca imaginou que algo assim pudesse acontecer. Sem outra alternativa tivemos que olhar para dentro de nós mesmos.
Escrevo este poema, não com a pretensão de que ele seja uma obra de arte. Sei que minhas toscas palavras não tem fôlego para tanto. É apenas o testemunho de um homem de poucas letras que atravessou madrugadas teclando estas palavras para dizer que elas foram as minhas armas nestes dias de silencio e desamparo.
Escrevo esse poema não para fazer a autopsia da pandemia mas para documentá-la para outras gerações. Para que se saiba que mesmo com todos os avanços tecnológicos, as pandemias continuam acontecendo como aconteciam no inicio das civilizações. O que nos salvou da morte foi a rápida fabricação das vacinas que, aos poucos foi nos tirando da jurisdição do tormento. Este poema é um carimbo para atestar que no século 21, aconteceu uma pandemia do coronavirus que matou milhares de pessoas pelo mundo todo e se estendeu de um lado a outro da terra embrulhada em alucinação e desespero.
Enquanto escrevo, as orelhas da madrugada escutam o som do teclado, o som do medo, imerso que estou em mim mesmo e minha ressignificação. A humanidade mudará os seus conceitos e pré-conceitos? Sua forma de ver o outro? Seu jeito de ver o mundo?
O que afinal o coronvírus nos ensinou?
que lição nos deixou?
Aprendemos alguma coisa com os recados que vírus deu? (E não foram poucos os recados), ou seguiremos na mesma toada como se nada tivesse acontecido e como fossemos senhores do nosso destino? Como se fossemos os donos da razão?
Caminho sedento neste deserto de perguntas sem respostas com minhas máculas, minhas culpas e meus pedidos de perdão tentando não sucumbir diante das aflições, dos tormentos, das tribulações. Tentando não entrar em declínio porque sou batizado com espirito santo e fogo e igual a um camelo cruzo o deserto e desta minha diáspora que tento escrever a biografia da pandemia que se arrastou que nem cobra que se encolhe e joga o bote. É este o registro já no ano de 2022 com novas variantes, novos medos, novas alucinações.
É o que posso escrever de mais legítimo para contar o que aconteceu e como a humanidade mergulhou nas trevas do coronavírus.
E mais facil atravessar uma quarentena do que uma ausencia.
O resto e silencio.