Roberto de Sena
Mural do Oeste
Acabei de ler o livro O Língua, do escritor de Formosa do Rio Preto, Eromar Bomfim. E confesso que ainda estou com a emoção da história saindo pelos olhos. De uma forma surpreendente Eromar nos leva, com sua escrita madura, a fazer uma viagem aos primórdios da formação do nosso povo.
O livro nos pega e nos arrasta para dentro da leitura já no primeiro parágrafo: “Olha, Eu nem sei dizer para onde depois daqui. O que eu sei é que a perseguição não acabou, e parece que nunca vai acabar”.
E dai por diante vem uma torrente de fatos mostrando a gênese do Brasil dos colonizadores que aqui chegaram, com as bençãos e a participação da Igreja Católica, se autodenominaram donos da terra e, se colocaram na condição de senhores acima do bem e do mal.
Como se sabe, esses colonizadores deram um carimbo oficial a tragédia de escravizar os povos negros trazidos de África como mercadoria. Não satisfeitos, esses mesmos homens brancos invadiam as aldeias indígenas, destruíam tudo, matavam os nativos sejam adultos, mulheres ou crianças, da forma mais cruel possível. Os que, por milagre conseguíssem escapar, eram levados para serem vendidos como escravos.
Numa dessas invasões, um padre estupra e engravida uma índia adolescente e, fruto desse estupro, nasce um filho. Perceberam a engenharia criativa desta história? O que vem pela frente é ainda mais emblemático. O menino, resultado da miscigenação de sangue índio e branco é – ao meu ver – uma extraordinária metáfora do povo brasileiro. Mistura de heroísmo, covardia, coragem e capacidade de sobreviver mesmo nas condições mais adversas. E segue a história: instrumentalizado pela Igreja, o filho do padre com a índia, cresce falando a língua indígena mas, manipulado pelos padres, acaba convertido a fé católica aprende a falar português, ganha a alcunha de O Língua, esquece quem era, adota outro nome e passa a se enxergar quase como um dos colonizadores. Estes, de forma sagaz, utilizam o moço como tradutor e interprete – e vice e versa – sempre a favor dos brancos e contra os índios. O rapaz se transforma assim em uma peça chave na estratégia dos colonizadores em dominar os nativos.O personagem O Língua é uma síntese do que somos como povo: inteligencia e contradição, barbárie e esperança e. fatalmente, esquecimento daquilo que nos pertence como raiz cultural, entre elas a nossa língua, pois permanecemos fascinados pela língua do invasor, atualmente o inglês dos norte- americanos, a música dos norte-americanos, as invenções, a filosofia e o pensamento dos norte-americanos. Incorporamos isso sem nos darmos conta de que o que é nosso poderia ser muito mais belo. Por ser nosso. Apenas por isso. Isso é tudo. Raiz e beleza.
É algo profundo e que diz muito de nossas raízes e da alma do povo brasileiro. Embora revele esse traço em que o colonizado, sem outra saída, premido pelas circunstâncias, pela miséria ou apenas para manter-se vivo, alia-se a aqueles que o exploram, o livro não fica nessa única visão. Mostra também um povo que mesmo sem ter as condições materiais (cavalos e armas de fogo), enfrenta a luta, resiste e, muitas vezes, prefere morrer a ser escravo.
Essa coragem também se verifica nos povos negros. O livro mostra como eles se rebelam, enfrentam os senhores, fogem, fundam quilombos, símbolos da resistência contra o opressor. Nestes quilombos vivem não só os negros mas também índios e brancos desafortunados e, dessa miscigenação, é que se forma o nosso País. Vale ressaltar aqui a pesquisa feita por Eromar Bomfim para mostrar os povos nativos, as rotas, as tribos e uma infinidade de detalhes que tornam a obra ainda mais robusta.
O LÍNGUA conta ainda de forma poética e trágica, como povos indígenas fugiram do litoral e das áreas mais privilegiadas e vieram escorraçados habitar a nossa região.
O Brasil de O LÍNGUA e da genialidade de Eromar Bomfim é o de 500 anos atrás mas é também o de hoje. Noutra escala mas com o mesmo formato. Os colonizadores continuam fazendo o que sempre fizeram, investindo no caos, na matança, na escravidão para tirar vantagem e continuarem no topo da pirâmide
O LÌNGUA é um texto original, cheio de beleza e criatividade, uma obra prima. Saravá Eromar Bomfim. Inté isturdia quando a gente arribá no mundo.