Roberto de Sena
Eu me lembro de uma luz meio azulada na biblioteca. Eu olhava aqueles livros e refletia sobre quantos cérebros foram derramados naquelas páginas. Sim. Todo escritor deixa nacos do seu cérebro nas páginas, um pedaço da sua alma ou a alma inteira em cada livro. Na pálpebra de cada palavra. Na sobrancelha de cada silencio. Assim penso, enquanto o dia floresce erguendo a cabeleira do sol sobre a cidade e eu aproveito a hora para digitar estes silêncios que se alongam que nem uma imensa cobra se locomovendo preguiçosa e enigmática.
Escrevo agora com a Rua São Sebastião de Barreirinhas sendo o chão de minha memória, um pé de tamburi, um pé de munguba, uma lagoa e os gritos dos amigos jogando futebol nos campos da minha infância. Isso tudo forma um labirinto, um túnel de cupins, um jogo de espelho, sombra e luz na lembrança. Meus dedos faíscam nas teclas e as palavras explodem na tela, ora sorrindo, ora angustiadas. ora, ora pra fora. Dizia o locutor no rádio transmitindo uma partida de futebol que eu ouvia quase em delírio, naquele tempo, na rua São Sebastião em Barreirinhas com a poesia já querendo sair pelos olhos, pela boca, pelos cabelos. A poesia com sua asa de nuvem e sua mão de pilão batendo interminavelmente no cérebro sem que eu, menino ainda, soubesse do que se tratava. Eu corria para um canto e ficava horas sozinho, cismando com meus fantasmas num jogo de sombra e luz. Eu não sabia o que era aquilo que me dava de repente, que me fazia largar a partida de futebol que eu tanto amava e amo e me isolar no canto onde o delírio me iluminava. Hoje sei que era poesia chegando de uma caverna dos confins do tempo, vindo no meu DNA, dos meus ancestrais de África, no canto triste dos escravos, na rebeldia, ou no banzo de quem atravessa o oceano e sabe que nunca mais vai voltar. A poesia veio em mim talvez lá do fundo da diáspora, lá de onde trago essa melancolia, de onde garimpo palavras na solidão destes momentos de desterro.
A palavra – dizia Carlos Drummond de Andrade – tem sete faces secretas sob a face neutra. O poeta mergulha nelas e emerge com o esplendor de mil fogos acesos nos olhos.