Em Santana das Pedras muita gente já tinha pedido ao prefeito para que fizesse uma reforma no cemitério. Diversos abaixo assinados tinham sido mandados ao chefe do executivo municipal. O prefeito, com sua costumeira lábia, e seu jeitão de coronel sertanejo, prometeu que iria resolver o problema, engabelou a todos e terminou por não fazer nada. Sabe-se que os vivos, quando tem seus interesses contemplados, esquecem logo dos seus mortos e preferem cuidar de suas vidas, principalmente se recebem algumas benesses, como era o caso de muitos dos que reclamavam da situação do cemitério.
O prefeito deu um empreguinho para um, pagou uma conta de luz para outro, deu uma cesta básica aqui e acolá e isso foi o suficiente para calar os mais exaltados. Os mortos que ficassem lá com os problemas deles. Que se virassem como pudessem na sepultura. Afinal se o negócio já não andava fácil para morto, imagine para vivos.
Agora, no entanto, surgiu um fato novo e que mobilizava toda a população: a tão falada implantação da barragem. “Se essa barragem estourar vamos ser levados por água abaixo e morrer todos no meio da noite esperneando igual o povo de Brumadinho. Vai ser uma tragédia, uma bagaceira só e tudo vai ficar por isso mesmo. No Brasil a Justiça é só para os ricos e brancos. Cadeia é só para preto e pobre. Nós vamos perder tudo e ficar no pau da goiaba. Não podemos permitir que uma desgraça dessa aconteça em Santana das Pedras” dizia seu Francisco da Padaria.
Aqui relembro ao leitor que depois que dona Maroca cochichou o assunto no túmulo do seu esposo Zé Maritaca,no capítulo anterior, a alma do defunto, ouviu o que ela disse e achou que ela estava coberta de razão. “É muito desaforo, o prefeito permitir a implantação de uma barragem que poderia acabar com a cidade de uma hora para outra. Isso só pode ser perseguição a mim pois quando eu era vivo ganhei três eleições dele. Ele só conseguiu ser prefeito depois que eu morri. Teve que esperar eu morrer para ser prefeito. Será que é por conta de eu ter sido enterrado aqui que o prefeito, para se vingar das derrotas que eu impus a ele, não arruma o cemitério? Hum.Hum… Num duvido nada. Ele deve tá deixando o cemitério assim abandonado para ver se o opositor de Deus, o capeta passa aqui e me leve para o inferno”, pensou a alma lá dele – Zé Maritaca – “Pois ele vai ter uma surpresa desagradável, vou mobilizar os defuntos para a gente fazer um tendepá nesta cidade” .
Diante desta conclusão e com a ira dos tempos em que era vivo, a alma de Zé Maritaca resolveu agir, imediatamente, convocando as almas dos demais mortos para uma assembleia geral com a finalidade de impedir a instalação da tal barragem e além disso obrigar o prefeito a fazer uma reforma total do cemitério para promover a melhoria na qualidade de vida dos defuntos. Se é que defunto tenha qualidade de vida. Sabe-se lá.
O certo – senhores e senhoras leitoras – é que o caso, de uma hora para outra, num piscar de olhos, tomou proporções tais que tocou o coração de todos, inclusive do padre. Durante uma missa, como se uma alma tivesse baixado no sacerdote, ele começou a falar em tom diferente. Disse que depois das reivindicações feitas pelos moradores, só faltava agora os defuntos se revoltarem e saírem do cemitério para cobrar providências ao prefeito. “Não se pode relegar assim ao abandono os nossos mortos, foram eles que construíram a história desta cidade e merecem terem um local digno para descansarem em sua última morada. Temos lá enterrados ex-prefeitos, grandes lideranças, juízes, vereadores e até um desembargador. Não se pode admitir esse descaso com os mortos. Não se pode esquecer também que lá está enterrado o maior líder político que essa cidade já teve que é o nosso saudoso prefeito Zé Maritaca, o homem que mais fez por esta cidade. Além disso minha gente, o prefeito também não pode permitir que uma barragem seja feita aqui em Santana das Pedras pois isso vai trazer grandes riscos para os moradores. Precisamos todos unirmos forças e lutarmos contra essa maldade que querem fazer com o nosso povo” argumentou o padre durante o sermão da missa daquele domingo.
E continuou falando
-É preciso ter respeito para com os vivos não permitindo a instalação da tal barragem que nada vai trazer de bom para o povo de Santana das Pedras. Só vai trazer perigo da barragem estourar e todo mundo morrer como sempre acontece no Brasil e nenhuma providência é tomada e ninguém vai preso. Este é um problema. O outro problema igualmente sério é a falta de respeito com os mortos. Infelizmente para o atual prefeito quem morreu, morreu, não volta mais e nem vota pois se voltasse e votasse, ele – o prefeito – estaria em maus lençóis. Não teria voto nem dos defuntos! Disse o reverendo com as mãos espalmadas na frente do rosto. Os fiéis, embora concordassem com o que o padre dizia, notaram que a voz do sacerdote e seus gestos estavam diferentes, como se ele fosse outra pessoa. Parecia possuindo por uma alma do outro mundo.
O que passo a contar agora foi compadre Bento que me contou. Se for mentira é dele que eu não sou homem de mentir, apenas repito o que me contaram. Pois bem, prosseguindo com a história, relatam os habitantes de Santana das Pedras que uma noite ouviu se um estrondo medonho. Compadre Bento disse que, em toda a sua vida, nunca tinha ouvido nada igual. Segundo ele, muitos pensaram tratar-se de guerra, terremoto , muitos pensaram ser o fim do mundo, não foram poucos os que desesperados correram e se embrenharam nas matas ao redor da cidade. Alguns chegaram a pensar que Antônio Conselheiro estaria voltando para continuar a catequizar o sertão. Já outros, chegaram a acreditar, que Lampião e seu bando tinham ressuscitado.
Quando o dia amanheceu os moradores perceberam espantados que o muro do cemitério havia sido completamente lançado ao chão, espatifado como se fosse feito de isopor, os tijolos estavam espalhados por todos os cantos, sendo que estranhamente muitos tijolos foram cair a mais de trezentos metros de distância ficando espalhados bem na porta da prefeitura como se fosse uma espécie de recado das almas para o prefeito. Além disso, um espanto grande aguardava os moradores. Ao percorrer o cemitério todos, ainda chocados com o que havia acontecido, tiveram uma surpresa ainda maior: ouviram vozes de mortos conhecidos dizendo que iriam tomar providências e fazer o prefeito cuidar do cemitério e dar um fim nesta história de implantação de barragem em Santana das Pedras.
Menino foi uma debandada geral, um corre-corre sem fim. Não ficou ninguém no cemitério para servir de testemunha do que havia ocorrido. O medo se espalhou na cidade e os moradores, como quem estivesse tomado por uma paranoia coletiva não duvidavam de nada mais. Os mortos teriam se revoltado? Será? É possível quem já morreu, derrubar os muros do cemitério e se organizar com a finalidade de fazer o prefeito recuperar o campo santo onde tantos moradores de Santana das Pedras estavam enterrados e ainda por cima impedirem o prefeito de autorizar a construção de uma barragem que poderia destruir a cidade?
– Cê tá ficando doido João Pela Onça? Onde já se viu dizer que gente que já morreu, que tá enterrado, fala de dentro do túmulo e ainda derruba o muro do cemitério? Isso é caso de trancoso como dizia o povo daquele tempo. É conversa pra boi dormir. Aliás pra boi não. É conversa pra jegue dormir pois só jegue para acreditar num trem desses.
Dizia o segurança do prefeito, o conhecido Rui Caburé, enquanto tomava um gole de cachaça no bar do seu Odilon.
João Pela Onça, considerado um dos homens mais corajosos de Santana das Pedras por já ter matado e arrancado o coro de várias onças, coçou a cabeça e rebateu a fala de Rui Caburé.
– Olha meu amigo eu vi com meus próprios olhos. O muro do cemitério todo no chão de fora a fora e aquilo não foi serviço de gente vivo não. Se foi morto eu num sei mas que aconteceu alguma coisa estranha ali aconteceu com certeza. Disso eu não tenho a menor dúvida. Como é que pode os tijolos do muro do cemitério ter voado a mais de trezentos metros até a porta da prefeitura? Isso num tem explicação.