Roberto de Sena
Eu sei que morri. Não adianta tentar me dizer o contrário. Morri de angústia, de solidão, de ausência. Eu sei que morri e morrer é da vida! Eu só não sei é quando foi que morri. Nem sei em que dia foi o meu velório e o meu enterro.
Não me lembro em que cemitério meu corpo foi sepultado. E não sei o que está escrito na lápide do meu túmulo. Essa dúvida faz com que eu continue andado pelas ruas do meu infortúnio. Tal e qual como se eu ainda fosse vivo mesmo eu sabendo que morri. Só não sei quando. Mas que morri. Morri! Disso não resta qualquer dúvida. O que você está lendo agora são apenas reflexões filosóficas de um cadáver.
Na dimensão que estou agora encontrei-me com Cazuza, Renato Russo, Ana Cristina Cesar, Torquato Neto, Cacaso, Ferreira Gullar e Wally Salomão e bebemos, em silêncio, um copo de solidão e ausência. Você tem toda razão de estranhar meus olhos de açudes secos, Minhas palavras agrestes, feitas de mandacarus. Sim, no estado em que estou você tem toda razão em não entender o arame farpado que cerca o meu silêncio Mas, por favor, não finja que não vê os urubus se alimentado do que restou de minha esperança. Dá para perceber que cada palavra que escrevo é o suor do cérebro pingando na página e que a amnésia não é apenas uma doença. É o nome do lugar para onde fugimos quando o desespero é maior que a nossa capacidade de suportar-lo. Sei que morri. Não sei como. Atravessei o mar morto só pra ancorar no porto do seu olhar. Dá para perceber que ficar em silencio é minha maneira de fugir para além da morte? Para o não lugar?
Esqueça. Fui me refugiar lá onde o deserto faz fronteira com a ausência e sigo lambendo o tornozelo das palavras. É isto: Amarrei meu juízo no tornozelo das palavras. Elas me arrastam por onde querem. Não são poucas as palavras que possuem a natureza de certas mulheres. Nos pisam com o seu calcanhar e ainda olham para traz só para terem a certeza de que nos destruíram e que não sobrou nada. Meu juízo e minha alma estão pendurados em um arame farpado igual a pele de bode secando ao sol nos quintais do sertão. Contemplo o infinito com meus olhos de cacimba seca Eu te escrevo chuvas e sempre que te vejo penduro meu cérebro na parede Para que teus olhos me olhem ainda que seja do jeito de quem entrega um punhado de farinha na cuia. Eu não sei o seu nome mas posso te chamar de bromélia, de orquídea do vale, de papoula da Índia. Posso te dizer nuvens ainda que me olhes com olhos de arame. Eu te olho com olhos de faísca, olhos de relâmpago e visgo. Posso te dizer veredas, riachos, flores. Ainda que não me mostre tuas matas ciliares, teu intimo capinzal eu te direi redemoinhos ainda que sejas o açude e eu morra de sede, ainda que sejas o rio seco onde eu cavo meu desespero.
Acendo duzentos mil candelabros pois é sempre assim: quando termino de escrever um poema tenho a sensação de ter atravessado um rio cheio de jacarés e, inexplicavelmente, não ter sido devorado por eles. Acho que a poesia é isso. Essa capacidade de morrer e permanecer vivo com essa voz de mil alqueires. Escrevo gemendo que nem alma penada na noite profunda. Escrevo ganindo igual a um bicho sendo empurrado para o matadouro . Escrevo com a caligrafia da arvore seca. Árvore retorcida no meio da queimada, com os olhos de quem teve a esperança roída pela miséria.
Eu sou desses seres que pregam a alma nas palavras. Eu escrevo como quem pede uma esmola pelo amor de Deus e assim vou latindo meu desespero. Essa vocação pra ser infeliz foi tudo que me restou. Eu escrevo e sei a cor da tragédia. Eu sei que o destino é um pistoleiro de aluguel, vive na tocaia e sempre ataca de surpresa. Eu sei o nome da tragédia e para tentar me defender eu escrevo e pra quem se aprofundar nesse texto, entenda que esse é meu pedido de socorro. Eu escrevo pra pedir socorro. A maneira de náufragos ou de um homem perdido que roda, roda, roda e sempre sai no mesmo lugar. Paradoxalmente é deste mistério que brota a minha iluminação e faço da palavra escrita a corda que me sustenta e com a qual atravesso o abismo.