A pátria da água não é somente o Amazonas do poeta Thiago de Melo.
Não é apenas o Pantanal matogrossense do poeta Manoel de Barros.
O Oeste Baiano também é a pátria da água.
Um acervo de rios outorgando ao silencio, a organização das veredas
no arquivo das nascentes.
Uma ópera de rios canta no horizonte do Oeste Baiano.
É o êxtase das águas batismais,
águas místicas, eucarísticas, batismo de luz e esplendor
Os rios guardam águas em suas algibeiras (as lagoas)
O Rio possui cartilagem de pedra e raízes.
De um lado a outro do Oeste Baiano
ouve se a canção das águas nos lábios dos rios
que tem a mesma beleza extrema dos lábios das mulheres
guardiãs dos segredos das águas. As mulheres do Oeste Baiano
Quem vem de Salvador recebe as boas vindas do mítico Rio São Francisco
e uma carruagem de água pode ser vista do alto da ponte na cidade de Ibotirama, onde o sol se derrama.
Braços hospitaleiros de água e beleza seduzem o viajante que vem do Piauí e se depara com as margens do rio em Formosa do Rio Preto.
Na terra se escreve a caligrafia das águas do Oeste.
Quem chega de Minas Gerais é saudado pelas águas festivas e pelo carinho do Rio Carinhanha e do Rio Corrente e guarda nos olhos a magia do sol nascente.
Quem vem de Brasília, Goiás ou Tocantins é envolvido pela geografia do cerrado e guimarãesrosamente, se entrega ao Rio de Ondas e ao Rio Grande.
Esta é a geografia das águas. Os rios formam o comitê de recepção de quem entra no Oeste Baiano.
Para serem ainda mais gentis, os rios convidam os ipês, os jatobás, os cajueiros, os pequizeiros, as bromélias, as orquídeas e todos se juntam em um grande mutirão, construindo as cores que se entrelaçam na aurora formando um painel para além do delírio.
Uma paisagem se sucede a outra, um rio dialoga com outro rio num lamber de línguas que produz encanto. É o sublime trabalho das águas.
No cerrado baiano as águas são subscritas subterraneamente pelo Urucuia, o segundo maior aquífero do Brasil. Válvulas de água que não param de soletrar o nome líquido de todos os rios.
O Urucuia é um armazém de água no ventre da terra.
O sistema Urucuia se estende pelo chapadões dos gerais indo até os limites de Tocantins e Goiás.
São 22.540 quilômetros quadrados de água florescendo dentro da terra. Um estoque de água sangra na boca das manhãs, a canção secreta do subsolo, do sub-silencio.
41 por cento da água subterrânea do Rio São Francisco vem do Urucuia, do reino das raízes e dos micro-organismos cantando no útero morno da terra de onde partem os impulsos elétricos da fertilidade e da verde explosão das plantas na superfície.
As plantas rompem a casca da semente, bebem a luz e se embriagam de sol e sertão.
Ana Júlia Heringer (na época em que esse poema foi escrito ela era diretora do Jardim Botânico de Brasília), informou que o cerrado é a terceira província orquídea do país. São 504 espécies de orquídeas conhecidas até agora.
O som da palavra ORQUÍDEA apresenta uma beleza suave. A palavra parece nascer do pistilo da flor e tem um sabor feminino e nos induz a pensar no belo significado da palavra clitóris, por exemplo.
A flor possui o formato feminino das nuvens, pétalas de orquídeas acendendo o lume da paisagem.
No cerrado os meses sem chuva deixam a vegetação distorcida e seca.
Árvores tortuosas imitando as palavras que escrevo.
A caliandra é outro nome de flor do cerrado. Flor e palavra se entrelaçando.
As sementes são levadas pelos pássaros, pelos ventos e germinam nas chuvas de setembro. A chuva dos cajus.
São os requerimentos escritos na carne da terra. O segundo maior aquífero do Oeste Baiano é o bambui. São centenas de quilômetros quadrados emolduradas e cheias de inscrições rupestres.
Carinhanha e as lagoas do Jacaré, Serra da Saudade e Três Marias. Serra da Saudade parece o lugar onde a chuva faz sexo, onde a chuva procria.
É a casa da chuva. É o lugar onde a chuva se acasala.
A verdade verde vem do útero da terra com o mesmo enigma das águas que se azulam na cabeleiro dos rios.
Mãos tocando violas de água, canções entre libélulas e as bromélias,
acariciando o ventre da terra e a pele das árvores do bosque.
O Oeste Baiano tem 174.298 quilômetros quadrados de chão e água.
Água e chão. Rios e Sertão
Desdobrando-se em folha por folha
Folha por folha tocando os dedos das raízes
Na Boca dos Gerais
nasce a canção das águas
na Forquilha do Rio
Cantada pelos lábios
do Vau da Boa Esperança
e um coral das Três Bocas
repete o refrão hidrográfico .
Na cidade de Barreiras
o Rio de Ondas entra no Rio Grande
igual o homem entrando na mulher
ou a mulher no coração do homem
e os dois rios trocam um abraço molhado de vida
E seguem viagem para a cidade da Barra
a viagem de um rio assemelha-se a viagem do tempo.
Um rio deságua em outro rio
o tempo deságua em outro tempo
“Nenhuma homem se banha duas vezes no mesmo rio”
O tempo não é o mesmo para nenhum ser humano.
Rio e tempo são diferentes no formato,
na maneira de passar e de fluir
um rio cai em outro rio
e o tempo? Em que tempo vai cair?
Diferente dos rios o tempo é sem margens.
Ninguém se senta a margem do tempo e fica observando o tempo passar.
O tempo é sem margens.
Lábios de rios
são tão belos quanto os lábios de uma mulher
são tão doces quanto a língua de uma mulher
no dorso da serra
o ipê acena para o rio
um gesto de flor e beleza
de amizade a gentileza
Na margem do rio
o buriti abre sua palmeira verde
em saudações de veredas
no impulso das vazantes
A água passa diferente dos meses
dentro dos olhos dos camponeses
Água que em todo o Oeste Baiano nasce
e das encostas das serras, de dentro do chão,
mostra a sua face
O Oeste Baiano produz 8% de toda água do Brasil
Água-flor
Água-folha
Água-fruta
Água-pétala
pele de água
cobrindo o desenho da tarde
O amor da terra com as raízes
engravida as árvores.
As árvores enchem o tempo de flor parindo frutas.
O rio brilha e o olhar baunilha
na cintilação das cores
Água provocou delírio
de quem veio lá do Sul
em quem viu tanto verde
em quem viu tanto azul
Os rios do Oeste Baiano são responsáveis por 26 por cento
da vazão de água do Rio São Francisco.
Minuto a minuto entregam água.
Língua a língua,
Boca a boca
o corpo de um rio dentro do corpo de outro rio
é semelhante a palavra dentro de outra palavra.
Rio e palavra. Palavra e rio
Ambos tem o poder de matar a sede
água mata a sede de beber
palavra mata a sede de aprender
Ambos tem formato de lonjuras.
O que é longe e o que é perto
é uma derivação no rio e na palavra
Os rios são minha escola
e me transmitem saber
Sou diplomado em rios
fiz cursos de Rio de Ondas.
Estudei no curso do Rio Grande
em suas imensas salas de água.
Por isso escrevo na água
meu itinerário de silêncio.
O poeta de Mato Grosso, Manoel de Barros
tem doutorado em formigas.
Eu tenho doutorado em rios
e apresento o meu diploma de água
minha universidade de veredas,
trago palavras dentro do bocapio
trançadas na palha do buriti
na beira do rio.
É tempo de farinhada
forno aceso na madrugada
e as mulheres e os homens
cantando para chamar a alvorada
É a lâmina da palavra
descascando a mandioca
é o fogo da palavra
fritando o aipim
palavra de água
iluminando dentro de mim
Grande são os cursos destes rios
no silencio de minha memória.
Água: meu confessionário de segredos.
Rio: Meu refúgio e auto-exílio
Existem coisas que o rio não admite
água não estabelece limite
não há protocolo para se chegar a beira de um rio
No Oeste Baiano há uma reunião de rios
realizando o congresso das águas
é deste seminário de espumas
que minha canção emerge e brilha da cor dos peixes nas axilas dos rios
O que escrevo é a caligrafia dos rios mesmo que pelo avesso.
O que escrevo é meu Plano Diretor de Bacias Hidrográficas,
geografia física, econômica, política e humana do Oeste Baiano
Este poema é meu estandarte para que não se permita que
os ricos tenham hegemonia sobre as águas e os pobres morram de sede.
O que será destes rios que escrevo daqui a 100 anos?
Ainda terão portos?
Estarão vivos?
Estarão mortos?
Escrevo para que homens e mulheres do futuro
tenham mais lucidez do que os homens e mulheres do presente
matar rios é o mesmo que matar gente.
Não há máquina de fazer água.
Água se faz dela mesma,
dos elementos do chão,
das profundezas das raízes,
da música das nascentes,
da restauração das veredas,
do reflorestamento,
das nuvens com seu discurso de chuva
da evaporação do silencio.
Água se faz dela mesma,
dos seus enigmas,
dos seus carretéis de água,
da medula e da semente da água
A água é descendente da própria água
água é ancestral dela mesma e de todos os seres.
Percorro rio por rio
vereda por vereda
correndo córrego por córrego
Córrego por córrego
Córrego por córrego
O sistema de um rio é delicado e complexo,
um rio não sobrevive sem os peixes,
sem as árvores das margens,
sem as formigas, sem as minhocas,
sem os pássaros que carregam as sementes nas fezes
e vão semeando árvores.
Rio, peixes, pássaros, bichos, insetos, formigas, minhocas, flores
fazem parte do mesmo enigma e se complementam
no diagrama e na arte final da natureza
Rio Branco, Rio Preto
águas de um soneto
Tenho a ponte e o poente
tenho pente do Rio Corrente
a lua cheia ponteia todo o vale
Tenho carinho
do Rio Carinhanha
Eu morro
no Rio dos Cachorros
Meus emblemas
no Rio das Emas
Muitas léguas
no Rio das éguas.
No rio dos porcos
Muitas águas
Eu me abandono
no rio do sono
Meu devaneio
no Rio do Meio
Eu sonho
no Rio Santo Antonio
Eu sei o cio do Rio das Fêmeas
Eu sei os seios dos cios das fêmeas.
Cio das fêmeas, em noites fogos,
Em noites fêmeas,
De fogo e fome de fêmea
de Rio das Fêmeas
O Oeste Baiano é a maior bacia hidrográfica do Nordeste
72 rios
72 rumos
e um só destino
o destino de ser Rio São Francisco
Sãofranciscando nossas emoções.
Boca do Rio Grande
Beijando a boca do Rio São Francisco
bem em frente a cidade da Barra com seu casario
A cidade se enche de desejo
ouvindo as línguas dos rios contando segredos
Os rios vão se entregando a outros rios,
se ramificando, se entrecruzando, se enriando,
entrando um rio no outro,
Rio-homem, Rio-mulher
Seja lá o sexo que rio tiver
Assim ás línguas
vão se tocando
vão se amando,
vão se lambendo,
se dizendo
o que só as águas sabem dizer.
Os rios se defendem no Comitê de Bacias. No umbigo dos dias
buscando refúgio legítimo contra os esgotos que são jogados
diretamente no leito.
Não se pode compactuar com a tietetização dos rios do Oeste.
Esgoto no rio é ato demente
e faz do rio um pobre penitente,
um rio é nosso irmão, nosso parente.
Matar um rio é o mesmo que matar gente.
Não se bebe água de rios digitais
embora eu digite com ênfase o nome dos rios
Estou na beira de um rio
que tem curvas de mulher
estou na beira de um rio
e sinto-me na beira de uma mulher
por isso essa ânsia de mergulho
de ficar dentro, lá na parte mais íntima
onde só vão os que sabem da luz santíssima do prazer da água na fonte
Os rios tem margem de palavras
as palavras tem margens de rio
só sabe quem sentiu
mergulhar na palavra
tem o gosto de se atravessar um rio
e a beleza de ficar dentro de uma mulher
Rio do Mimoso
Rio Formoso
Rio de São Desidério
Império dos rios
Sitio do Rio Grande
onde a lua se expande
Lua leitosa
em uma curva
do rio de Formosa
Corre tanto rio no Oeste
que a terra se veste
toda de água
pra fazer nascer a plantação,
a soja, o milho e o algodão
tanta terra pra plantar
os tratores que aqui gorjeiam
gorjeiam mais do que lá
Não permita Deus
tanta água secar
O rio quer cumprir o seu destino
de um dia chegar ao mar
A soja com seus milhões de hectares
acaricia a pele da terra
preparando a canção da safra
folhas verdes na vastidão silenciosa do cerrado
Quilômetros de soja solidão a dentro, latifúndio até onde a vista alcançar
Violino de som verde
Na áspera espera do canto metálico das colheitadeiras
Grãos amarelos que dormirão armazenados em silos
e depois viajarão de carreta, de trem,
de navio, de avião para lugares distantes
Os grãos esmagados, convertidos em óleo.
A soja enlatada
lata a lata
lata a lata
lata a lata
lata a lata
enchendo as prateleiras nos supermercados do mundo,
o algodão do Oeste é transformado em tecido
e está nas casas e nas ruas da Europa, da Asia, dos Estados Unidos.
O sol lambe o tempo do alto de sua torre
A claridade canta e acende o azul.
Eis a fisionomia do cerrado baiano.
O algodão é uma guitarra de solos brancos
esperando a música das máquinas
O algodão canta dentro do sonho no coração da safra.
Guitarra branca na vastidão do Oeste
É o idioma branco da planta na língua da manhã agrária.
Assim como os rios repartem sua beleza
é preciso também repartir a riqueza.
O povo precisa, com urgência, ter acesso,
ao desenvolvimento e ao progresso.
O povo também quer ser sócio
da riqueza do agronegócio
No Oeste Baiano são poucos os ricos e muitos os pobres
É preciso dar dignidade ao ser humano
ou todo desenvolvimento será apenas um engano
Agricultores conectados com a bolsa de Tóquio,
de Londres, de Nova York, de Hong Kong, de Paris
devem saber que a miséria faz o ser humano infeliz
É imperativo que a riqueza seja dividida
pelo bem da própria vida.
Tem gente passando fome
fome de comida
fome de vida
fome de estudar
fome de aprender
fome de alegria
fome de prazer
fome de não ter
o que comer
Vejo nos olhos.
Pois são nos olhos
que a gente vê
o jeito da dor doer
É preciso repartir a estrutura fundiária e produtiva
para manter a esperança viva
No Oeste Baiano a média anual de luz solar
é de 2.739,6 horas representando um percentual de 3 por cento em relação ao total de horas do ano que atinge 8.760 horas
Agosto é o mês mais ensolarado do Oeste Baiano com uma média de 286,2 horas e o menos ensolarado é novembro com 188,6 horas.
Junho e julho são os meses mais frios com 22,2 graus.
É tempo de forró e das fogueiras de São João, de dançar quadrilha
e tomar quentão.
De maio a setembro: seca
De outubro a abril: chuva
Chove anualmente entre 900 a 1.500 milímetros no Oeste Baiano
Curvas de rio
são parecidas com as curvas do corpo de uma mulher
Os olhos de uma mulher são portos onde ancoro meu desamparo
a mulher com seus rios de desejo e seus cabelos de água
possui o mistério das canoas em noite de lua.
Estou na beira do rio ou na margem de uma mulher?
Olhos de peixes
nome de bichos
cheiro de plantas
sabores de lugares
noites de luares
Os rios espelham em sua moldura
os vilarejos e as cidades
e todas as suas vertigens
São 35 cidades no Oeste Baiano
Barreiras (A capital)
São Desidério
Correntina
Casa Nova
Cristópolis
Angical
Cotegipe
Wanderley
Riachão das Neves
Formosa do Rio Preto
Barra
Mansidão
Santa Rita de Cássia
Buritirama
Muquém do São Francisco
Brejolândia
Serra Dourada
Tabocas do Brejo Velho
Santana
Canápolis
Sítio do Mato
Feira da Mata
Cocos
Coribe
São Felix do Coribe
Jaborandi
Carinhanha
Pilão Arcado
Campo Alegre de Lourdes
Luís Eduardo Magalhães
Catolândia
Santa Maria da Vitória
Serra do Ramalho
Cristópolis
Remanso
O Oeste Baiano possui um milhão de habitantes.
80 por cento da população não tem esgoto e nem água tratada
São 4 vales férteis
O Vale do Rio Grande
O Vale do Rio Preto
O Vale do Rio Corrente
O Vale do Rio Carinhanha
O rio é um caminho
e o povo ribeirinho
sabe da água a sua língua
muitas vezes morre a míngua
minguando de fome na lonjura,
em noite escura, sem carne assada
e nem farinha com rapadura
É a fome no sertão
onde o rio não passa
é tempo de solidão
As grandes lavouras trouxeram também a sua face positiva
e transformaram uma região semimorta em terra viva
Entretanto no Oeste Baiano ainda se morre de verminose,
de tuberculose,
de parto,
de doença de chagas,
de lepra,
de abandono
sobre a febre da terra
Os rios nos ensinam
a geografia do horizonte
a mucosa das águas
e a dicção do que não é silencio
e nem música
sendo, ao mesmo tempo, silencio e música
O sabiá
O pássaro preto
O joão de barro
As emas
os caititus
os urubus
o gavião
as onças
o veado
o tatu
o mico
o tico-tico
a rolinha fogo-pagô
a juriti
O bem-te-vi
As garças
as marrecas
O martim pescador
Os bichos com o som de suas cores trazem madrugadas dentro da garganta e é do canto de cada pássaro que o dia nasce rompendo o útero da noite
Ah meu Rio Grande
no ombro do teu barranco
chorei minhas primeiras saudades
Ah meu Rio Grande
no ombro do teu barranco
chorei meus primeiros desassossegos de amores
Eh meu Rio de Ondas
A procissão das ondas
Capítulos de água sem intervalos comerciais
Cachoeira do Acaba-Vidas
Cachoeira do Redondo
Água do tesouro
No rio do ouro
um barranco ouviu meu choro
Língua de água
Língua de terra
de plantas
de pássaros
de peixes
Linguagem de rio é coloquial
som de água e sol
som de água e lua
Som de chuva,
sintaxe das árvores,
das folhas, das frutas
A canção das águas
principia nas raízes
e jorra na copa das árvores
na garganta dos pássaros
A garganta do dia se abre a espera da língua da noite
a boca da noite conversa em idioma de estrelas
que o rio traduz em seu espelho.
Um rio entra em outro rio
igual uma gaveta de água
uma gaveta de silencio
formando gavetas líquidas
águas que se engavetam
um rio dentro do outro
com a mesma magia
do homem dentro da mulher
Os rios ensinam em cada curva
uma árvore nova, uma nuvem,
um pássaro, uma palavra, um silencio
No Oeste Baiano a música aquática
é a canção do rio costurada pelos ventos nas árvores,
nas nuvens, nas vozes dos pássaros.
Rio Guará
Rio Tamanduá
Rio Borá
Rio Triste e Feio
e igual ao dia em que ela não veio
Rio Roda Velha
Rio Estiva
Rio Sassafrás
Vereda Mutum
Rio Formoso
Riacho Serra Dourada
Riacho do Brejo Velho
Riacho do Entrudo
Rio Ponta D água
Ribeirão da Ilha Grande
Rio Mosquito
Rio Pindaíba
Rio Balsas
O Rio de Correntina
encanta e ilumina
Prefácio de delírio
Composições de auroras
Rio de Janeiro
tanta tinta pra pintar
a pele do cajueiro
e vigoroso e belo
ipê amarelo
Eu aqui fico
Rio dos Angicos
Bem ao meu lado
O Rio Arrojado
O Rio do Nado
Subo no rochedo
tentando descobrir o segredo
da lua no Penedo
Um riso largo de rio largo
e eu me largo no rio
no Campo Largo
Rio que vai para todo lugar
Taguá,
Jupaguá
O Rio é uma verdelágrima em Wanderley
No povoado da Goiabeira se apresenta um desafio
Não sei se é um rio na beira de uma mulher
ou uma mulher na beira de um rio
Sem decifrar a visagem
O rio segue sua viagem
De aldeia em aldeia
Nego D Agua e sereia
na ponta da areia
Rio-menino
Rio-menina
Rio-homem
Rio-mulher
O rio sabe o sexo que bem quiser
Rio Jatobá
Rio da Pratinha
Rio Porto Alegre
Rio Fervedouro
Rio Passaginha
Rio Gado Bravo
que não aceita ser escravo
Rio Bastardo
Rio Sapão
Rio Riachão
Rio São José
Rio-homem
Rio-mulher
Rio Livramento (Livrai-nos do sofrimento)
Rio do Santo (Ouvi minha oração de água)
Não se deve permitir
a evisceração dos rios
No Oeste Baiano está uma parte do bioma cerrado,
vegetação de cerrados com florestas de galeria, veredas, marinbus,
Campos úmidos, caatinga arbórea e floresta submontana,
uma área de transição entre cerrado e caatinga
E vestígios de mata atlântica em Formosa do Rio Preto.
Em Formosa do Rio Preto na divisa com o Tocantins
esplende um lugar chamado Garganta
onde o vento canta uma música de pedra e rio
O tempo com seu avental de enigma
e seu martelo de vento
esculpe asas e azuis nas pedras
Jatobá
Marcela (Árvore com nome de mulher)
Macaúba
Marmelada de Bezerro
Tamboril
Jurema
Cedro
Pau D arco Roxo
Mandacaru
Umburana de cheiro
Aroeira
Angico
Sucupira Preta
Sucupira Branca
Barriguda (Árvore que parece uma mulher grávida)
Murici
Umburaa
Umbu
Ingá
Caju
Cajá
Ananás
Araticum
Imbiruçu
Gabiroba
Araçá
Araribá
Braúna
Jacarandá
Quaresmeira
Jenipapo
Gameleira
Canela de Ema
Assa Peixe
Bacupari
Cõco-babão
Pinha do Brejo
Cedro Rosa
Ipê
Buriti
Flor do Cerrado
Xixá
Cagaita
Sete Sangrias
Sete Sangrias de Água
Setenta e duas sangrias de rios
O Oeste Baiano é o parlamento das águas
onde os rios discursam pedindo preservação
As orquídeas batem continência quando o rio passa
com sua caravana de água.
O ipê acena gestos de flores e beleza
O rio contorna o dorso da serra
língua de água fazendo carícia
É o prazer do rio cantando seu êxtase de água e luz
É a música azul do silencio
na orquestra do agreste
o Oeste se veste todo de água
O rio não escolhe os lugares onde vai passar
são muitos os lugares para o rio molhar
Escrita de rio não é só pela metade
Um rio passa diferente de uma saudade
O rio tem esse jeito de ser que o tempo indica
o rio que passa, não é o mesmo rio que fica.
O tempo tem inveja dos rios porque o tempo é sem margens
Um rio não corre na margem do tempo.
Já o tempo passa na margem do rio
Escrevo os rios do Oeste Baiano porque a escrita vence
a caligrafia sinistra das queimadas e renasce verde e viçosa
A escrita vence a morte
Em muitos lugares o rio é uma espécie de escola.
Ensina a higiene, o prazer, a beleza, a alegria
e derrama nos lugares pobres a sua poesia
Quando um rio atravessa
regiões de miséria e analfabetismo
o rio ensina a fraternidade
o amor e a solidariedade
O rio ensina a pescar
ensina a falar
ensina a plantar
o rio ensina palavras
e também um jeito de falar
É divino o poder escarlate destas germinações das orquídeas
fazendo emergir os íntimos aromas da terra
A voz de outubro se estabelece por entre o sol e suas espigas de nuvens
As sílabas da água resvalam nos rochedos e as palavras encachoeiradas
cantam na garganta do abismo.
O rio faz a curva por trás do silêncio
e segue com enigmas secretos nas algibeiras (as lagoas)
O Oeste Baiano tem um milhão de pessoas
Cada um tem no peito um porto
cada um tem nos olhos um cais
e o sonho verde dos buritizais
Há lugares de água salobra
Água braba que não canta
Água que quebra as paredes da garganta
Lavo as palavras
no Rio Grande
no Rio de Ondas
no Rio Corrente
no Rio Preto
no Rio Branco
no Rio das Pedras
Água luz que bebi
no Rio Itaguari
Este poema é uma bruaca de água que carrego através dos séculos.
Outorgo-me o cargo de secretário das águas, fiscal do azul.
Trago no meu peito oestino cangalhas de água
que abrem as cancelas dos meus versos em canoas e redes,
em varandas que abrem janelas pra lua
A música do rio jorra em lugares tão distantes
os seus acordes dissonantes
Formam novos rios e fazem a convocação geral da águas
na vastidão do Oeste Baiano.
Rio-ofertório
Rio-oratório
Rio-comunhão
de vinho e de pão
de paz e perdão
“Se as portas da percepção
estivessem limpas,
tudo pareceria para o homem,
tal como é: infinito”
Escreveu William Blake
O Rio Grande é o maior afluente da margem esquerda do Rio São Francisco
Com uma extensão de 220 quilômetros
o rio desenha desejos em calendários de silencio e peixes
O Rio-cantor
Rio-do peixe
e da paixão
Os rios do Oeste Baiano tem o destino de ser Rio São Francisco
O Rio Grande quando encontra com o Rio São Francisco
Traz o Rio Preto
o Rio Branco
O Rio de Janeiro
O Rio de Ondas
É o parlamento das águas
onde os rios discursam pedindo preservação
A piracema é o cio dos peixes
é o espetáculo que os rios oferecem
repartindo os sons da aurora
Um rio tem sempre algo a dizer
dizer curvas
dizes paisagens
Dizer mensagens
que só os rios sabem dizer
Pros que sabem ouvir o rio
Língua de rio é fácil de aprender
Mesmo quem é analfabeto
um rio pode ler.
Os rios se esgueiram e fazem tatuagem na pela da terra
A água sabe sua estatura
e seu canto eloquente
de trovador em noite de lua
As serras olhas contemplativas
com cara de monge budista
Um rio e seus altares
um rio e seus falares
O rio tem sua própria sintaxe
Sua linguística
sua gramática
Esse jeito de falar meio cantado
do jeito que corre um rio fazendo curvas
assim também corre a fala do povo do lugar
A fala do povo faz curvas de rio
só sabe quem ouviu.
Não existe nada igual
Uma casinha branca e um rio cantando no quintal
É preciso ter cuidado com a cobra sucuri
num bote ele pode lhe abraçar e lhe engolir
Em cada cais uma saudade
em cada porto ancorei um instante
entre o que é espanto e instinto
entre o que não sei e o que sinto
O Oeste Baiano tem um milhão de pessoas
Cada um tem no peito um porto
cada um tem nos olhos um cais
e o sonho verde dos buritizais
Sou um súdito dos rios
A eles entrego meus desatinos e solto minhas amarras
com minha pele toda costurada de água e lua
De gerânios ou tulipas, de buritis,
Cedros, ipês, pequis, aroeiras,
Araras, micos, juritis,
Rolinhas fogo-pagô
Gaviões. Lobo Guará,
Gaviões e emas.
É esta a estética que professo
na raiz da filosofia
Do pão e da poesia
Águas grisalhas
grisalhando meus olhos
Eu sou póstumo e pretérito
o rio é meu invólucro
mecânica de minha compulsão
Ouço as dicções do rio
canto sua fonética
sua estética
e a converto no mosaico dos meus desejos.
Elegantes e aristocráticos, os ipês e os buritis
comunicam lilases, verdes e azuis as águas.
Um rio com seus números
e sua matemática inviolável
produz riqueza, alimento e progresso.
Apesar de ser lírico em seu espasmo
o rio também se enfurece
e a fúria de um rio é maior que a noite mais longa
o rio berra seu desequilíbrio de bicho que não cabe dentro de si
transpõe as margens em sua febre e seu delírio,
Engole muros, veículos, telhados, derruba casas,
Arrasta as pessoas pelo pescoço e mata sem piedade os seres que atravessam o seu caminho de rio em fúria.
O rio apresenta seus dias de espanto
rumina a catástrofe e a tragédia em seu estômago
quando desanda a produzir desamparo e cataclismo.
No meio da crise nervosa, o rio espuma, cachorro doido latindo água por todos os lados. Águas vândalas.
O vandalismo das águas é resultado das agressões do ser humano
ao sistema nervoso do rio. O rio possui mandíbulas poderosas
cujas mordidas de águas são destruidoras.
Quando passa a fúria, o rio volta para o seu leito,
sereno e em paz como se nada tivesse acontecido
e segue seu curso e seu espelho de sol e lua
Um rio as vezes me atravessa de solidão
em gavetas de água
em arquivos de água
o sol estabelece memorandos de luz
decretando o azul que o rio soletra em seu idioma de espuma
O rio é uma engrenagem de água com seus peixes e seus engenhos
Sua fauna e sua flora dialogando com as árvores das margens
mecanismos líquidos que o rio derrama de horizonte a horizonte.
Um rio não se exonera. Ele calcula o azul em que expressa sua linguagem
Tenho rios no meu currículo de margens
e horizontes nas cordas de minhas lágrimas
o rio foi minha aula inaugural.
É sobre os rios do Oeste Baiano que escrevo
É deles que extraio a matéria prima da minha poesia
Tenho alma de rio. Tenho rios dentro da alma.
É preciso respeitar os estatutos da água
os decretos da água
os códigos da água
o cio da água
Há rios que correm dentro dos versos
com suas libélulas
vestidas de água e lua.
A língua do rio tem sua própria autonomia,
sua dinâmica, sua bússola, sua dicção de liberdade.
Um rio e seus falares
um rio e seus cantares
um rio e seus luares
As cachoeiras são instituições do rio
obra de arte na qual as águas se penteiam
Cachoeira do Acaba-Vidas
Cachoeira do Redondo
Cachoeira do Rio do Ouro
Cachoeira do Estrondo
Lagoa Azul
Sumidouro do Inferno
Rio subterrâneo na gruta do Padre em Santana dos Brejos
O Rio belo
no povoado de São Marcelo
em Formosa do Rio Preto
Sítios arqueológicos na Serra da Piragiba e em Missão de Aricobé.
A biografia de um rio nunca se escreve.
É certo dizer que rio é música
e que música é rio.
É impossível escrever o poema do Oeste Baiano
sem contar com letras de água
O engenho e o desenho mitológico dos rios,
o diálogo das margens com a arquitetura das cidades
e a escala de influência que o rio tem no sotaque de um povo de um lugar
É o rio quem compõe o essencial e sem limites.
Ele está na soja, nas frutas, no milho, no algodão,
na farinha, no arroz e no feijão.
O rio está no corpo dos seres humanos
O rio está no boi que berra no fim da tarde
nos pássaros chamadores de auroras
e nas horas que manhançavam,
nos pirilampos e nos urubus que se reúnem para decifrar um enigma
Entre o que vive e o que morre
o rio atravessa sua membrana de mistério e silencio
As matas ciliares são as palpáveis pálpebras do rio
O rio caminha ombro a ombro com a história.
Qualquer rio. Qualquer história. Qualquer lugar.
Protagonista de civilizações
o rio luta para nunca se exaurir e desfere coices de água
É impossível contar a história do Oeste Baiano
sem contar a história dos rios
72 rios
72 rumos
E um destino de ser São Francisco
Cada morador tem no peito um porto
Cada morador tem nos olhos um cais
e o sonho verde dos buritizais
Um rio desemboca em outro rio
da forma que uma palavra desemboca em outra palavra
por trás de um rio quase sempre existe outro rio
e outro rio e outro rio e outro rio
por trás de uma palavra sempre há outra palavra e outra palavra
e outra palavra.
E outro rio e outra palavra.
Rio e palavra são feitos
do mesmo impulso de entrega
Do mesmo nomadismo que não permite a estagnação
e desnudam horizontes de surpresas.
Não se pode tirar a casca de um rio
como se tira a casca de uma árvore ou a casca de uma palavra
um rio é um pintor de paisagens em seu atelier de êxtases e delírio.
“A beleza do mundo tem duas margens,
uma do riso e outra da angústia,
que cortam o coração em duas metades”,
disse Virginia Woolf
Muitos dos caboclos ribeirinhos ainda vivem de forma primitiva.
Trabalhando de sol a sol no cabo da enxada,
cuidado do reino da mandioca e rezando para chover.
Moram em casas de pau a pique (taipa) e não tem esgoto
e nem água tratada. Bebem água do cisterna, da lagoa, do pote
e sobrevivem com a canga no cangote.
Muitos não sabem ler, não tem luz elétrica,
Não tem acesso a saúde. São homens e mulheres
que representam a solidão dentro da solidão.
Quando se olha na pele destes seres
Sente-se que há nos olhos deles uma angústia daqueles que nasceram
para viver como se não vivessem.
São homens e mulheres que com o tempo e o sofrimento
vão ganhando a cor das pedras.
Pedras que, de vez em quando, se iluminam com um sorriso triste.
Pedras que de vez em quando pensam que são gente.
Gente quando se transforma em pedra é incorporada a paisagem
e atinge estágio de mandacarus, cactos, terra queimada e sem horizontes.
Lá no fundo do Brasil profundo
onde não existe médico
nem delegado, nem padre e nem juiz
O rio é a única referência
O rio com sua bondade suprema
passa por esses lugares para que a solidão não faça morada nas almas
Água é uma reivindicação da carne
É uma súplica das árvores
Não adianta espremer o silencio
do silencio não sai água.
Não há saúde sem água,
Não há educação sem água
Água é o primeiro fundamento da vida
Em sua disciplina
esta é a ética
que o rio ensina
Gente sem água
É gente-solidão
Para falar sobre o Oeste Baiano visto meu casaco de água,
encho meus olhos de rios e vastidões
e navego de rio em rio em rio em rio enrio
Tenho alma de rio
tenho rios na alma
Quando estou na beira da água
parece que vou mergulhar no corpo de uma mulher
Corpo de mulher possui segredos de água, de curva de rio
Sou beiradeiro de muitos rios.
Os olhos das mulheres são meu porto, meu ancoradouro
O Oeste Baiano é uma diocese de rios
em suas pastorais de beleza
águas que batizam e fazem a catequese de um povo
Fica sendo (esta escrita) uma moringa de água
que levarás em tua capanga de saberes
Esta é a canção dos Xicriabás, dos Aricobés e dos Tapuias, dos negros e dos brancos que estão nas raízes da formação do povo do Oeste Baiano
A palavra escrita
é infinita
e não seca nem na estiagem mais longa
A escrita de um rio não perece
e oferece água de sua música de um século para outro século
Ainda que o rio emagreça e suas costelas de água fiquem a mostra.
Daqui a 100 anos o que será dos rios que escrevo?
Ainda terão portos?
Estarão vivos?
Estarão mortos?
Escrevo para que os homens e mulheres do futuro
Tenham mais lucidez do que os homens e mulheres do presente,
o rio é nosso irmão, nosso parente.
Matar um rio é o mesmo que matar gente.
O que escrevo é a caligrafia dos rios
Gravada no rosto do futuro.